NALDOVELHO

ESPAÇO DEDICADO A POESIA

terça-feira, outubro 24, 2006

POEMA DE AMOR



NALDOVELHO

A campainha da porta, não toca!
A fechadura emperrada, enferrujada.
Um vaso de vidro, flores murchas num canto.
O rádio ligado não sintoniza nada!
A vidraça embaçada, chove aqui dentro.
Lá fora a cidade agoniza e chora.
Os carros que passam atropelam as horas.
O sinal está fechado já faz um bom tempo
e as pessoas assustadas, apressadas, nem olham,
tropeçam e caem, levantam e fogem.
Na parede do meu quarto um quadro sombrio:
paisagem de outono, folhas caídas, abandono.
O papel sobre a mesa, o cigarro entre os dedos,
a ardência nos olhos, faz tempo eu não bebo!
Faz tempo eu não choro, não sonho, não oro.
Na gaveta da cômoda um maço de cartas,
escritas, aflitas, gritos de amor.
Nunca foram postadas, não sei teu endereço!
Amanhece lá fora, aqui dentro o silêncio.
Já não chove aqui dentro, agora chove lá fora.
Lá no fundo do meu umbigo: esforço, esboço,
tentativas fracassadas de um poema de amor.

domingo, outubro 22, 2006

IRACEMA



NALDOVELHO


Uma história de vida, muito mais do que uma lenda que a magia dos tempos buscou preservar. Noite de lua cheia que derramada por inteira, numa louvação a natureza, iluminava aquele lugar. Água de cheiro no corpo, Iracema colhia estrelas para enfeitar seus cabelos que brilhavam qual luz de luar. Flor do campo, delicado jasmim, a roupagem mais linda de um perfumado jardim. Iracema, a bela princesa, purificava o ambiente, muito incenso ali presente: canela, cravo e alecrim.
Foi então que de repente,para um canto que vinha das matas, Iracema sorriu satisfeita. Era um bravo guerreiro que se achegava e se lançava aos seus pés. O enfeitiçado homenageava os muitos encantos da Iara, dizia ter vindo de longe, só pra ver a princesa mais bonita do lugar. Trazia em seus olhos a certeza e em suas mãos uma braçada de flores, junto a um colar de esmeraldas que um poeta chamado Xangô mandou abençoar.
Diz a lenda, que por pura magia, do colo da índia formosa, um olho d´água brotou inquieto e envolveu o nobre guerreiro, que naquela fonte matou sua sede, purificou o seu corpo e por paixão incontida se perpetuou qual semente naquele colo nascente. Depois, cansado da jornada, dormiu o sono dos justos e enquanto dormia se transformou em pedra, guardião daquela fonte e eternamente o companheiro, da mais linda entre as princesas, a filha de Mamãe Oxum! E o olho d´ água se eternizou em nascente e de nascente transbordou cachoeira que depois se fez em rio de águas claras e envolventes que em suas muitas vertentes semeou por aquela terra muitas vidas, outras nascentes, filhos que aqui hoje campeiam, guardiões dos jardins de Oxalá.
E assim me contou esta lenda um velho índio, caboclo mateiro, que sentado em cima de uma pedra dizia ser o poeta, o senhor daquelas terras, certamente um grande guerreiro, que o vento, as matas e o tempo,por amor à natureza resolveram imortalizar.

VERSOS DESGOVERNADOS



NALDOVELHO

Não quero o poema aprisionado

em rimas óbvias e evidentes,
em métricas fieis carcereiras,

a impingir-me tantas besteiras,
pois enclausurados os versos,

já não me sinto um poeta
e confesso: calo-me diante da opressão.
Não quero estar manietado a regras,

que ditem caminhos ou fórmulas,
pois no poeta tudo é incerto.
Paixão que se contém oprimida

explode em constrangimentos,
deixa um vazio por dentro

e cala a inspiração.
Prefiro os contrastes da vida

em versos desgovernados,
que exponham no corpo as feridas

dos desencontros, das horas perdidas,
da nostalgia de um entardecer solitário,
ou de uma madrugada plena de insônia,
dissonância que brota tamanha

dos descompassos do meu coração.
Prefiro versos de chuva,

ou de um pistom demenciado em surdina,
de caminhadas solitárias, sem pressa,

por trilhas em desalinho,
pois em algum lugar desta estrada

eu sei, vai ter dor de partida,
vão brotar versos urgentes,

por sentimentos que se mostrem ardidos,
pois insólita é esta nossa

viagem na poesia que transcende o poema,
em versos que se mostrem dispostos
a seguir caminhos opostos

e de falares bem controversos.
Pois nada que eu faça vale a pena,
sem o atritar desmedido

da busca pela compreensão.

QUERO PINTAR NUM QUADRO



NALDOVELHO

Quero pintar num quadro
uma manhã cinzenta, nublada
e, um tanto ou quanto, sonolenta,
com chuva miúda a molhar a cidade,
trazendo a saudade para junto de mim.
Quero pintar um quadro com vidraça embaçada,
outono de folhas caídas das árvores
e o vento a levar meus queixumes pra longe.
Quem sabe o meu pranto chegue até você?
Quero deixar registrado com cores escassas,
que a vida que passa carece de graça,
depois que distância tomou conta de mim.
Quero pintar um quadro que mostre ao mundo,
janelas fechadas por trincos, tramelas
e não adianta, a campainha que toca,

é só o carteiro quê, não traz suas cartas.
E o telefone que toca: - desculpe é engano!
E nada acontece que me traga você.
Quero pintar um quadro que mostre um poema
com versos que chorem, pois chove aqui dentro,
mas não me molho por fora,
cristalizado o pranto de tanto doer.



O DESNUDAR DE UM POETA



NALDOVELHO

Um amontoado de palavras
a denunciar segredos,
sussurrados entre os dentes,
coisas que permaneceram latentes
e que hoje brotam incontroláveis
e se transformam em poemas,
sentimentos paridos,
extraídos, espremidos,
a revelar num amontoado de versos,
verdadeiramente confessos,
um grito ardido, irracional e aflito,
mostrando-me as entranhas,
profanando-me por inteiro.
O desnudar de um poeta
transmuta em beleza o que é feio,
pois feia é a dor da ausência,
do abandono e da amargura;
pois feia e a saudade incontida
que pode levar à loucura;
pois feia é a solidão inclemente
que traz a insônia insistente,
pois feia é a inquietude que eu tenho,
que me transformou num homem
que ao custo de muitas dores,
escreve, assim, coisas tão urgentes.

sábado, outubro 21, 2006

MEU JEITO DE SER



NALDOVELHO

Eu vivo a catar meus cacos e pacientemente os remendo, nem sempre bem remendados, às vezes mal encaixados, às vezes falta um pedaço, mas ainda assim dá para viver.

Quando eu me recolho feito eremita, busco a energia da fonte, busco curar as feridas, desencravar do espírito os espinhos, pois por mais doloroso que isto seja, eu quero continuar a crescer. Por isto resisto ao ocaso, fazendo com que a minha face enrugada possa te parecer sorridente e por Deus! Preservo um olhar bem safado a denunciar o ser que existe e que ainda vai demorar a morrer.

Quando vou ao passado rever minhas histórias, meus guardados, é para dissolver minhas mágoas, destilar meus lamentos, alquimizar minha dor, de modo a permitir que o poeta possa assim ser contundente ao te dizer que vale a pena viver.

É aí que surgem os poemas, versos que na realidade transpiram, palavras, emoções, sentimentos, de onde tiro o antídoto que possa imunizar as pessoas contra o desespero e o desencantamento, próprio daqueles que sofrem pela perda e por não compreender.

E assim vou vivendo mantendo viva a esperança e preservando nos olhos o brilho, pois penso que a vida é um privilégio que só o amor nos fará merecer.

COISA MAIS SEM GRAÇA



NALDOVELHO

Quantas coisas loucas, sufocando o pranto,
lua espremidinha, coisa mais sem graça,
abro a janela, noites de setembro,
flor de abandono, faço um poema,
falo de saudades, falo de você.

É um tal de faz de conta dentro do meu quarto,
vou abrir a porta, coisa mais sem graça,
noite de inverno, corredor deserto,
sinto o seu cheiro, e sinto o tempo inteiro,
já nem sei dar conta, preciso esquecer.

Nostalgia quando bate arde no meu peito
e este é um defeito, coisa mais sem graça,
chuva insistente, por fora e por dentro,
e se eu bem me lembro, flor da madrugada
quando nasce apronta, e eu quero amanhecer.

PARTES DE MIM



NALDOVELHO

Parte de mim caminha em silêncio, sorrateiramente, a observar detalhes, em busca de novos ensinamentos e de peito aberto para o amanhã.

Uma outra parte traz dentro de si visceralmente entranhado todo um registro passado de um mundo que sobrevive, até hoje, latente em meus sentimentos. Muitos ensinamentos acumulados, bagagens necessárias para a vida que escolhi viver.

Parte de mim não nega o sorriso abusado que faz de mim um poeta que clama a todo instante por um romance, mas não consegue dissimular a dor.

Uma outra parte traz lágrimas nos olhos, versos corajosamente desentranhados a confessar que a saudade ainda se faz presente, que houve um grande amor, hoje ausente, que deixou marcas, profundas marcas, e não deixou espaço para um outro amor.

Parte de mim grita o teu nome e o faz em doloridas cantigas, na verdade manifestos confessos, protestos contra os muitos enganos e por não poder voltar no tempo, só para te dizer, não vá!

Outra parte cala e não revela o teu nome, nega, renega e se esconde, diz que é mais forte, que supera, que é capaz de amar de novo, que mente, interpreta e se ressente de não ter encontrado o remédio, de não ter desfeito o feitiço, de ainda ter em meus dedos o teu cheiro. Que diabos! Só resta praguejar.

Parte de mim já tem cinqüenta e poucos anos, e não mais sonha, outra parte acredita na eternidade dos tempos e espera poder te reencontrar.

INQUIETUDE



NALDOVELHO

Deixe que eu fique quieto num canto, é melhor assim! Já custei tanto a encontrar um lugar, um bem confortável, ao meu jeito... Não dá mais pra ficar rompendo fronteiras, não dá mais pra ficar fazendo besteiras, andando de bar em bar, buscando um antídoto, um remédio, tentando saciar minha sede.

Quanta bebedeira! Quantas paixões desconexas, romances sem eira nem beira, acordar de ressaca num quarto de um motel vagabundo e barato e nem lembrar o nome da moça que, apesar de sorridente, assaltou a minha carteira e nem me trouxe prazer.

Agora, o jeito é ficar bem quietinho, não posso aborrecer meu fígado. O pâncreas então, nem pensar! Vai que eles resolvem se rebelar e armem um tremendo barraco e tudo acabe em conflito, me façam ficar amarelado, com muita dor e enjoado... Não dá mais para arriscar!

Ainda me restam os cigarros, enquanto os pulmões não reclamam e resolvem botar pra quebrar. Greve geral no pedaço! Até por que o coração já andou se rebelando, teve até pauta de reivindicações. Prometi analisar com cuidado e qualquer dia destes, me pronunciar. Só não sei o quanto eles estão dispostos a esperar. E tudo isto por causa de uma tal inquietude, coisa que eu não sei explicar!

Melhor deixar como está! Alguns CDs, alguns livros, muito silêncio no quarto, botar em prática um sonho, escrever poemas, canções, quem sabe uns contos eróticos, coisas que eu nunca vivi, mas fico bestando a imaginar!

Melhor mesmo é virar escritor, com sorte eu encontro o meu talento. Quem sabe ele não é o filho querido desta inquietude que eu falo? Quem sabe não está aí o remédio que vai curar esta dor esquisita que eu nem sei se tem nome, mas que teima em me assombrar?


UM ANJO ESCONDIDO NAS SOMBRAS



NALDOVELHO

Faz tempo eu percebo a sua presença, sua sombra, de relance, o contorno do seu corpo e até o seu cheiro. Só não consegui ainda ver o seu rosto! Não sei da cor dos seus olhos, nem da textura da sua pele e já faz um bom tempo que eu carrego a impressão da sua voz em meus ouvidos: meio rouca, palavras poucas, por tantos sofrimentos pelos quais você teve que passar.

Outro dia quase que lhe vi por inteira! Cheguei a ficar afrontado. Suor frio, coração descompassado, e de tão nervoso até pensei: chegou o dia afinal! Mas foi um engano, ainda não havia chegado à hora de tê-la concretamente ao meu lado.

Faz tempo que eu sei que você me sonda. Diariamente ao passar pelo meu quarto e ao debruçar sobre o meu corpo, você toca de leve com seus lábios o meu rosto e fica sempre uma impressão de frescor pelo ar.

Numa noite dessas, achei que acarinhava o meu cabelo. Mantive então os meus olhos fechados para não quebrar o encanto, pois a energia que me envolvia restaurava a paz em meu ser.

Faz tempo que eu sei que não existe engano, que se você aqui está, é porque eu estou nos seus planos, pois vai ser chegado o momento que vai me levar cuidadosa para o aconchego do seu colo, depois secar o meu pranto, tirar minha dor e cicatrizar-me as feridas. Sei também que esse aconchego não será para todo o sempre, pois logo deverei retornar ao caminho, pois ainda é longa a minha jornada em busca do meu destino.

Faz tempo percebo a sua presença. Bom saber que é uma mulher e confesso-lhe: não lhe tenho medo! Apenas uma paciente espera, pois sei que o que me reserva, tem cheiro e gosto da aurora de uma nova iniciação.

A QUALQUER MOMENTO



NALDOVELHO

Dizem que vai explodir! E que foi colocada no meio da praça no centro da cidade. São muitas as praças! Será? Quando vai explodir ao certo ninguém sabe, só se sabe que muitas coisas serão destruídas. Desde o sorriso puro de uma criança inocente, até a lata de cola de um pivete indigente. Desde o carinho da mãe para o seu filho, até a bofetada de um filho da mãe.

Ninguém sabe quem colocou e ao certo, onde colocou. Só se sabe que todos estão com medo. Já pensaram se ela estiver na rede de esgotos? O efeito dos restos saindo por todos os buracos e fendas?

A verdade é que a cidade hoje acordou em silêncio, também pudera! Disseram até que ela estava no ventre de uma mulher grávida por desgosto, uma dessas violentadas pela vida. Mas qual delas? São tantas!

Estes profetas não têm jeito, por causa disso os mais fanáticos, saíram pelas ruas matando todas as que estão, seja por gosto, ou por desgosto. Segundo eles, não dá para arriscar.

Muita gente esta fugindo para as montanhas, para os vales e até para o mar. Só que o medo os acompanha. Pode ser que ela esteja com um deles, quem sabe numa mala? Quem sabe encravada dentro de um coração? Quem sabe dentro da mente de algum cara indecente que até hoje não conseguiu se revelar?

É triste ver a debandada das pessoas indo para nenhum lugar, é triste ver as portas dos templos fechadas e os seus sacerdotes escondidos, amedrontados e a cidade deserta.

Ninguém mais se entende, pois têm medo da morte, pois têm medo da bomba, que a qualquer momento vai explodir, e ninguém sabe onde está.

sexta-feira, outubro 20, 2006

EM MUITOS COMPARTIMENTOS



NALDOVELHO

Mandei construir um palácio
com muitos compartimentos,
salas amplas e arejadas
para abrigar constrangimentos,
dores, culpas, arrependimentos,
escolhas equivocadas
e até maus pensamentos.
Depois de vê-los acomodados,
tranquei portas e janelas,
e fui até a "hall" de entrada,
passei por pesada porta de bronze
e sem olhar pra traz, parti.
Deixei lá todos esses guardados
que faz tempo incomodavam,
deixei ali, também, meu passado
faz tempo cristalizado.
O que está feito está feito!
Melhor buscar o porvir.

SAUDADES DO AMIGO


NALDOVELHO

Trago em minhas entranhas poemas tolhidos, truncados, feridos, sensações de um passado de muitas mordaças, ameaças, castigos, lembranças de um tempo onde o meu pensamento era como um rio: subterrâneo, latente, que desembocava vertentes doloridas, urgentes.

Trago na lembrança a imagem do amigo que desapareceu na fumaça, dos livros queimados em segredo e desgraça, e das idéias pisoteadas pela violência nas praças, esporas, patas, cavalos.; ou então na tortura que ainda hoje vigora, resquícios do antigo que tanta dor nos causou.

Trago em minhas narinas o cheiro de sangue dos porões dos navios, das fezes, latrinas, do cheiro de urina impregnado nas roupas e o gosto na boca da comida estragada e a fome, e o medo, e o medo, e o medo...

Trago, comigo, o grito estridente e a lágrima quente por dores profundas, verdades amargas, sussurradas, entre dentes, a revelar que o pensamento desapareceu de repente no pau de arara maldito, na água gelada e ardida, fios ligados, circuitos, e no terror convulsivo, dias e noites sem dormir. Trago feridas, até hoje doídas, que o tempo ainda não cicatrizou.

Quem sabe um resgate de vida? Quem sabe reencontrar meu irmão? O nome dele eu não digo, nem sob tortura eu confesso, que eu sinto saudades daquele que embarcou revoltoso nas asas estranhas de um pássaro que sequer decolou.

DIAS SOMBRIOS



NALDOVELHO

Serpentes sibilam satisfeitas,
sorrateiramente seguem sua sina,
peçonhentas procuram suas presas.


Cães guardiões permanecem em vigília,
farejam no ar o ataque eminente,
buscam inutilmente proteger os seus donos.

Nuvens pesadas dominam o ambiente,
pássaros feridos a procura de lenitivo.

É a mão do homem que novamente destrói,
semeia a dor, dissemina o ódio, constrói a guerra.

Não há nada de novo nas horas
e o Cristo continua sendo crucificado.

De nada adiantou o sorriso da criança,
a rosa jaz no chão despedaçada.

Notícias dos longes dão conta que o sonho
virou pesadelo nas mãos do carrasco.

Maria chora a morte dos seus filhos
e o diabo satisfeito, sorri.

sexta-feira, outubro 13, 2006

A PEDRA E O LIMO



NALDOVELHO

Ruas, travessas, esquinas,
o carro que passa, o som da buzina,
já faz tanto tempo, dá cá um abraço,
um aperto de mão.

No sobrado ao lado, alguém acena...
Muro de pedras, cheias de limo.
Algumas casas mudaram,
já não são mais as mesmas,
as pessoas também não!

O Bar do Armando,
agora é um depósito,
a quitanda virou sacolão,
e o armazém: oficina.
Tudo mudado!

Eu também mudei,
já não moro mais aqui,
já não tenho vinte anos,
não me restam tantos planos
e na possibilidade do engano,
não quero me transformar num depósito.

Melhor virar oficina,
vivo me ajustando,
recondicionando-me,
pra sobreviver às avarias.

Incomoda-me a proximidade da pedra,
assusta-me a possibilidade do limo.

domingo, outubro 08, 2006

RUA DAS PROFESSORINHAS



NALDOVELHO

As mulheres daquela rua...
Dizia o pai, professorinhas!
Ensinavam o b – a = ba,
o dabliou, o ipisilone.

Tinha uma mais novinha
a quem fiz juras de amor.
E ela dizia, assim, baixinho:
eu sou o mel de um beija-flor.

As mulheres daquela rua,
ainda as guardo na memória,
tão bonitas, tão morenas,
tão sozinhas, tão aflitas.
Lembro a ordem de despejo.
Nunca mais vi Maria Rita!


Hoje a rua é de passagem

e as pessoas que transitam,
não percebem, nem se importam,
casas frias, tão vazias.


Ainda guardo o seu cheiro
e a maciez dos seus cabelos.
Nunca mais fui bom aluno,

nem brinquei de beija-flor.

As mulheres daquela rua...
Dizia o pai, professorinhas!
Ensinaram muitas coisas
a um aprendiz de amor e dor.

sexta-feira, outubro 06, 2006

NO VENTRE DA SERPENTE



NALDOVELHO

Um anjo esquisito pousou do meu lado,
em versos obscenos revelou segredos,
costurou enredos mal alinhavados,
abriu as janelas, riu de debochado,
acendeu incensos, fumou um cigarro,
praguejou de um jeito bem desaforado,
arrebentou rosários, desmanchou mandalas,
bebeu meu absinto, ficou embriagado,
abriu suas asas, chorou como criança,
pediu café amargo, fumou outro cigarro
e nas teclas do piano cantou seus desenganos.
E quando um outro anjo veio em seu socorro,
gritou feito demente, saltou pela janela,
caiu sobre a roseira, manchou rosas de sangue,
correu em disparada, tropeçou no meio fio,
sujou asas de lama, não olhou pra lado algum,
atravessou a rua, morreu atropelado,
nasceu pra vida agora, deitado na sarjeta,
e assim pobre coitado, não tem nada de seu.
E quando amanheceu andou pela cidade,
tomou muita aguardente, fumou um baseado,
cheirou mil carreirinhas, roubou a sacristia,
trocou tiros com a polícia, chorou mais uma vez.
E quando um outro anjo veio em seu socorro,
sangrou sangue dos tolos, manchou confessionário,
e sem extrema unção morreu mais uma vez.
Nasceu do outro lado, no ventre da serpente,
não sabe o seu nome, nem sabe que morreu.

domingo, outubro 01, 2006

ANTES QUE SEJA TARDE



NALDOVELHO


Percebo a fragrância que suavemente se entranha

e a peçonha que insidiosamente se assanha.
Percebo as garras que impiedosamente arranham,
e a tua pele branca e tão cálida.
Percebo as minhas pernas, trêmulas, tão frágeis
e o batimento do um coração acelerado, descompassado.
Percebo as frestas, grutas, reentrâncias,
e a seiva a jorrar dos teus poros.
Percebo a janela abusadamente escancarada,
e a porta convenientemente trancada.
Percebo a lua por inteira, conivente, alcoviteira
a dizer-nos: ainda é cedo!
Percebo as horas, lentas, sonolentas,
e as lágrimas que indecisas não choram
e uma música nostálgica a tomar conta do ambiente.
Queria que a noite nunca mais fosse embora.
Queria que a dor ficasse presa lá fora
e o amor ficasse livre aqui dentro.
Queria poder perceber por todo o tempo cada detalhe,
até poder morrer, antes que seja tarde.