NALDOVELHO

ESPAÇO DEDICADO A POESIA

sexta-feira, dezembro 29, 2006

LÂMINA AFIADA


ARTE: NEYDE NORONHA

NALDOVELHO

Lâmina afiada corta a carne,
expõe entranhas e sangue visguento.
Mexo e remexo, exploro vísceras,
mãos como pinças, extraio a dor
cristalizada, faz tempo, lá dentro de mim.
Extraio a saudade e a lágrima covarde,
semente de outono, chorada pra dentro.
Limpo o sangue, costuro o corte
e em cima da mesa deposito tristezas
Papel em bandeja, macero o tumor.
Nasce um poema, lirismo ao avesso.
Apago o abajur, já posso dormir.

segunda-feira, dezembro 25, 2006

É HORA DE ENTERRAR NOSSOS MORTOS



NALDOVELHO

Melhor tirar os esqueletos do armário.
Hora de enterrar nossos mortos,
ninguém mais agüenta ouvi-los gemendo,
às vezes na sala, quase sempre no quarto.

Melhor dizer para aquele anjo esquisito
que vive de reinventar o pecado:
que somos filhos de um tempo
onde a inquietude é a razão de nossas loucuras.

Melhor desfazer a trama,
libertar a atriz, o músico, o poeta,
rasgar o texto e dar um basta aos melodramas.
Na maioria das vezes, o que vale vem de improviso.

Melhor desvendar os mistérios,
revelar o curso das lágrimas
e permitir que a vida se transforme
num grandioso e verdadeiro poema.

Melhor assumir que mentimos,
que vivemos de construir personagens,
que erramos ao esconder das pessoas
a verdadeira essência do nosso ser.

Melhor parar de contar com Deus,
de tentar suborná-Lo a cada passo,
com promessas, penitências, novenas;
melhor que façamos a nossa parte.

Melhor escancarar portas e janelas,
exorcizar o demônio em nós,
deixar que olhem dentro dos nossos olhos,
ainda que isto nos doa demais.

Melhor comer poeira de estrada,
mergulhar num oceano de possibilidades,
e ainda que naufraguemos e soçobrem cacos,
há como remendar-nos outra vez.

Melhor acreditar na eternidade,
e que somos infinitas pessoas,
e ainda que sejamos pequenos, em detalhe,
nenhum de nós tem nada que seja só seu.

domingo, dezembro 17, 2006

CRIME PREMEDITADO



NALDOVELHO

Crime premeditado
da virtude em busca do pecado,
da inocência a desafiar a peçonha
ao masturbar-se solitário na cama
por fixação na vizinha do lado.
Pobre de mim!
E assim foi o primeiro poema.

Crime premeditado
do menino que dobrou a esquina,
andou por ruas transversas,
becos, ruelas, travessas,
misturou-se aos vagabundos nas praças,
amou prostitutas, tão gastas,
e ainda assim escreveu mais poemas.

Crime premeditado
do jovem que acreditou em utopias,
escreveu canções de protesto,
reencontrou a vizinha peçonha,
mãe de três filhos e vergonhas.
por ter feito escolhas erradas.
Às vezes a vida é assim!

Crime premeditado
do homem que se feriu em espinhos,
que destruiu canteiros de rosas,
que sofreu por amor e ainda ama,
mas que por deixar a poesia de lado,
trilhou caminhos profanos,
quase enlouqueceu.

Crime premeditado
de quem se afogou em aguardente,
escalou cordilheiras estranhas,
rolou ribanceira abaixo,
chorou lágrimas de um tolo,
redescobriu em si mesmo o poema,
e enlouqueceu.

Crime premeditado
de quem assumiu a condição de poeta
e que sendo por natureza um tolo,
fez da palavra um consolo,
pois a sentença final: é culpado!
Condenado a viver na inquietude,
e a morrer de mal de amor.

terça-feira, dezembro 12, 2006

MENSAGEIRO DA AGONIA



NALDOVELHO

Coisa mais estranha a lua avermelhada,
tiros de escopeta sacodem a madrugada,
vidraça estilhaçada, Linha Amarela,
cidade sitiada, tranco as janelas.

Coisa mais sem graça, ruas tão desertas.
Já nem sei dar conta, janeiro ou fevereiro,
e eu nem sei seu nome, mas sei seu codinome:
se encarar o bicho pega, se medrar o bicho come.

Coisa esquisita este Rio de Janeiro,
meu santo padroeiro, tá refém, tá prisioneiro.

Também tem Linha Vermelha na cidade dos aflitos,
motorista encurralado lá meio do conflito,
facções de sangue quente em comandos divergentes,
tem fuzil AR-15, tão armados até os dentes.

De manhã leio as notícias na cidade sitiada,
tiro dado a queima roupa, assassinaram a madrugada.
Quem matou "é de menor", não conhece poesia;
bicho solto, bicho louco, mensageiro da agonia.

Coisa esquisita este Rio de Janeiro,
meu santo padroeiro, tá refém, tá prisioneiro.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

DIAS DE CALMARIA



NALDOVELHO

Aos poetas: a palavra e seus significados;
para que possam desconstruir o tempo,
dissolver coisas cristalizadas, revelar segredos,
tecer enredos como quem constrói uma teia.

O poeta é como uma aranha, sutil artimanha,
a devorar o verbo em suas entranhas,
para depois vomitar poemas...
Natureza de um tolo, prisioneiro de suas escolhas.

Sobrou-me então o silêncio
das noites choradas pra dentro,
dos dias de calmaria, faz tempo,
inquietude que não vai embora,
e eu nem sei explicar o porquê!

quinta-feira, dezembro 07, 2006

O REFLEXO DA TUA IMAGEM



NALDOVELHO

O reflexo da tua imagem
impunemente no espelho,
traz-me o imaginar atrevido
das coisas até hoje escondidas
por entre palavras, mistérios,
guardados que o tempo e a distância
por bom senso e prudência
acharam por bem preservar.
Este teu olhar atravessado
com um certo ar de suspeita,
num misto de medo e segredo
e com jeito de seja ou não seja...
é de certa forma o melhor enredo
a provocar o poema, a seduzir o poeta.
E aí é só colheita de versos,
é só emoção incontida
e eu te confesso, indefeso,
que a beleza que eu vejo no espelho
vem da matriz dos meus desejos,
do objeto dos meus sonhos,
do alvo da minha paixão.
Portanto é melhor preservar o silêncio,
melhor aquietar-me em meus versos,
pois o veneno que eu percebo em teus lábios,
é dose demais pros meus planos,
é bem mais do que eu consigo suportar.

sábado, dezembro 02, 2006

SALA DOS ESPELHOS



NALDOVELHO

Sala dos espelhos, parede em frente, e um quadro contundente a transbordar luminosidades em harmoniosos matizes a retratar com fidelidade lágrimas cristalizadas, há tempo choradas, por conta de um desencontro, coisa estranha demais!

Na parede ao lado, lado esquerdo do peito, marcas de batom... Na parede ao fundo um poema rabiscado, versos ardidos, por conta de uma despedida, que se fez com dor de partida, para nunca mais.

Na parede do outro lado, lado direito do peito, janela aberta, luz da lua inquieta e um vento frio perverso, dando conta que a solidão veio pra ficar.

No teto, espelhos, inúmeros e pequenos espelhos, unidos como um quebra cabeças, ou coisa assim! No chão, muitas coisas estilhaçadas, testemunhos dos meus ais.

Triste é saber que esta sala não tem portas. Estranho é que só hoje eu tenha percebido.