NALDOVELHO

ESPAÇO DEDICADO A POESIA

sábado, setembro 30, 2006

A OUTRA METADE



NALDOVELHO

Toda vez que você fica amarga,

eu sinto assim, alguma coisa estranha,
tipo aperto no peito,
coisa que eu não sei explicar direito
e que custa tanto a passar.

Toda a vez que você chora,

meus olhos ficam como se marejados
e são sempre lágrimas rebeldes,
dessas que nos surpreendem fugidias
e que sem mais nem menos teimam em chorar.

Toda vez que você sente saudades

eu fico aqui a sentir essa tal de nostalgia,
dá uma inquietude danada
e eu sem saber o motivo
fico bestando uma resposta,
acabo lembrando o seu rosto
e fico sussurrando o seu nome...
Resultado: sinto saudades também!

Toda vez que você sorri satisfeita,

eu sinto que a vida se ajeita,
e um novo ânimo se assanha,
brotando num sorriso abusado
que toma conta do meu rosto
como uma nova esperança pelo ar.

E então, me vejo debruçado em poemas,

acreditando na magia de um caminho,
de um atalho que me leve direto ao seu colo
para que eu possa me sentir inteiro,
pois este nosso caso não tem mais jeito,
fez deste poeta um pedaço,
a outra metade de você.

quinta-feira, setembro 28, 2006

O VERBO CERTO



NALDOVELHO

Cada coisa ocupa um determinado lugar no espaço. Só que o tempo e o movimento discordam, e o que hoje está aqui, amanhã certamente num outro lugar, depois, nem sei por onde estará.

Até o amor, sentimento danado de espaçoso, que como diz o poeta, é infinito, mas só enquanto dure, mingua atrofiado pelo tempo, é removido para um lugar seguro, tipo pequena gaveta no departamento das lembranças, e fica por lá, feito cicatriz quê, na mudança de tempo, arde, incomoda, até que venha um outro amor e anestesie a danada da saudade e cure no coração do poeta a dor da distância e da perda de quem tantas marcas deixou. E ainda que caiba um poema, esse não mais incomodará.

Até a vida, algumas plenas, tão significativas, outras efêmeras, muitas desapercebidas e aparentemente sem valor. Como se pudesse haver vida que não fosse preciosa! Pois é: o tempo, delas também se encarregará! Mesmo a vida do poeta: não é certa a perenidade de sua obra, ou mesmo de suas dores, nada permanecerá.

Gosto de pensar na infinitude. Costumo dizer que a existência nos preservará; assunto para espiritualistas, ou coisa assim. Outras vidas, novas vivências... Mas, certamente em algum outro lugar, abençoados pelo esquecimento, terreno fértil para novas sementes, novas culturas, outras histórias... Ainda assim, nada permanecerá!

Nada fica! O tempo, que a tudo transforma, tem a sabedoria da Criação, e o Verbo certo é recomeçar.

Bom! Chega de filosofar e vamos ao poema:

O tempo que eu tenho transpira urgências,
movimento inquieto de versos profanos,
confissões tardias, mudanças de planos...
O amor que eu tenho respira carências,
madrugadas de insônia, solidão e abandono.
Melhor debruçar nas teclas de um piano,
quem sabe uma cantiga possa te comover?
Ainda que não creias, ainda te amo!

quarta-feira, setembro 27, 2006

AVASSALADORA AUSÊNCIA



NALDOVELHO

Gotas de suor brotam do seu corpo,
da sua pele branca...
Embriagadora presença,
avassaladora ausência.
A sensação da sua pele

lembra seda macia,
os seus seios fartos...
Se continuar lembrando eu infarto,
mas não consigo parar!
Parar de amar é um castigo
que eu não quero me imputar.
Só me resta mergulhar neste rio,

afogar-me em seu colo,
só para respirar o seu cheiro,
só para fazer você me respirar.
E o que eu faço com o desejo
de sentir em minhas mãos os seus pêlos?
Se você deixar eu me aquieto,

se você deixar eu penetro
em seu quarto, em seu leito, em seu corpo.
Instalo-me, de um jeito, assim abusado
e fico sendo sua cicatriz preferida,
que vai arder, vai doer, vai incomodar,
só para que você não se esqueça
que toda a vez que eu choro,
choro a dor dos poetas,
choro feito criança,
choro de saudades, confesso!
Pois já não existe remédio
que possa curar o que eu sinto.
Se inventarem um, eu não tomo!
Senão pode vir o mal do abandono
e a esse, certamente, só vai me restar
morrer de tanto amar.

domingo, setembro 24, 2006

PRIMAVERA, SETEMBRO, ANO DAS TREVAS



NALDOVELHO

Loucura, solidão, clausura. A fresta de janela que abres só aumenta a tortura, não permite ao vento o acesso e o ar permanece viciado. Só uma nesga de luz me invade e não resolve a escuridão.

O pedaço de pão que ofereces não mata minha fome, engasga na garganta, só aumenta a minha sede e me causa aflição. E nem adianta ligar o rádio, as músicas que tocam ferem meus ouvidos e as notícias que surgem sangram em minha alma. Não há nada de novo que mereça um sorriso, um poema, uma canção.

Jerusalém está em chamas, Beirute apodrece nos escombros, Bagdá afunda no fundamentalismo raivoso e o Pai a tudo observa e chora.

Médica é assassinada a tiros na Gávea, dois homens morrem em tiroteio na Vila da Penha, mãe envenena e mata filha de oito meses na Taquara, moradores do Morro do Borel, na Tijuca, protestam por morte de garoto, homem é encontrado baleado na Abolição, morre menino baleado em escola no Ilha do Governador. Algumas das muitas notícias da semana, última de setembro, início de primavera, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Aqui como lá, e em todo o lugar, não há nada de novo nas horas e tudo caminha a passos rápidos para o naufrágio, para o caos.

O carinho que ofertas não cura minha dor, não seca minhas lágrimas, não acalma meu coração. E o medo suprime meus poemas, emudece melodias, e o que permanece é o barulho surdo dos tambores, a sufocar friamente toda a inspiração.

Olho pela fresta da janela e Te vejo, ainda, crucificado e percebo que estás vivo, sofrendo por teus irmãos.

Por piedade, tirem urgentemente este Homem da Cruz!

sábado, setembro 23, 2006

ANJO TRAVESSO



NALDOVELHO

Um anjo travesso pousou do meu lado,
fez caras e bocas, revirou meus guardados,
encontrou num poema palavras tão doces,
sorriso obsceno, reinventou o pecado.
Tirou minha roupa, bebeu nos meus lábios,
deitou-se comigo, ofertou-me um abrigo,
suado de orgasmos, veneno, gemidos,
e escreveu o seu nome a um palmo do umbigo.
E fez tatuagem, estranha, selvagem,
sussurrou indecente, segredos, bobagens,
violou meus sentidos, propostas, promessas
e colheu sentimento, ternura, loucura...
Matou minha fome, saciou sua sede,
e, assim de repente, avisou que era um sonho.
Abriu as janelas, sorriso nos olhos,
bateu suas asas, e sem dizer nada, partiu.
Um anjo obsceno deixou aqui o seu cheiro
e em meu corpo suas marcas:
vestígios de um dia, nostalgia latente,
inquietude evidente entranhada em mim.

sexta-feira, setembro 22, 2006

INSANOS E PERVERSOS



NALDOVELHO

Acho que eu vi um gatinho
desfilando calmamente pelo telhado
e um cachorro embaixo latindo!
Cachorros não sobem em telhados...
E eu aqui em meu quarto rindo.
Acho que eu vi um soneto
de versos insanos e perversos,
brotavam das mãos do poeta!
Cantigas de amor são tão lindas,
deixam-me até afrontado.
Acho que eu vi a saudade
que clandestinamente entranhada
em meu peito sussurrava segredos.
Saudade é fruta amargosa,
espinho que se colhe com a rosa.
Acho que o gatinho que eu vi,
escorregou e despencou do telhado.
E o cachorro coitado!
Fugiu assustado
por conta da barulheira
do gato com a roseira, enroscado.
Acho que o poema que eu fiz
dá conta do amor que não me quis.
Acho que o poeta continua rindo
do cachorro, do gato
e dos seus próprios versos,
cada vez mais insanos e perversos.

quinta-feira, setembro 21, 2006

VACILOS DO CORAÇÃO



NALDOVELHO

Cicatriz dolorida, dedo miúdo esquerdo.
Nunca mais descasquei cana, medo!
Vai que eu esqueço de novo
o pobre do mindinho esquerdo?
Cicatriz disfarçada, pálpebra do olho direito,
vez por outra arde, denuncia, faz alarde,
reclama da lágrima, diz que é cisco no olho.
Quem sabe um segredo?
Coração em degredo vez por outra ainda chora.
Escorrem versos, ponta dos dedos...
Gota a gota, segredos, meus medos.
Vai que eu esqueço a trilha
e me vejo de novo na rota do desassossego?
Melhor buscar frutas tenras,
não esquecer de evitar as ácidas!
Melhor usar óculos escuros...
Não esquecer do colírio!
Melhor permanecerem os versos,
vez por outra coração ainda vacila,
teima em buscar outras trilhas,
e aí...

O JOGO DO PODER



NALDOVELHO

Cartas abertas descortinam segredos,
revelam enredos, alguns indecentes.
A dama de copa seduziu o valete
que de espada em punho assumiu o poder.
O rei aturdido e em fuga ferido,
da dama de espada foi se socorrer.
O valete de ouro perdeu seu tesouro,
do exílio reclama o direito ao seu trono
e na calada da noite refaz os seus planos,
quem sabe outro rei possa lhe favorecer?
De longe os arcanos, a tudo, assistem,
maiores que são na arte que existe
e tramam e tramam, e nem sabem o porquê.
O Eremita sentado, sabiamente ensina,
e convence o louco a se proteger.
A torre em ruínas não é mais segura,
e o enforcado coitado, não tarda a morrer.
E o diabo sorridente colhendo os frutos,
cartas indecentes do jogo do poder.
O mago inventa um paraíso distante
e diz para o povo acreditar no consolo
que um mundo melhor possa lhes conceder.
Cartas abertas revelam perigos!
Enamorados distantes vagam carentes
e o mundo descrente assiste assustado
o povo faminto tomar o poder.

domingo, setembro 17, 2006

POETA DÁ SEMPRE MUITO TRABALHO



NALDOVELHO

É melhor fazer direito, O coração fica do lado esquerdo do peito. Encaixe com cuidado, tudo muito bem conectado, vai ser preciso que esteja sempre ligado para vida que precisa viver. Que esteja muito bem regulado, não pode ficar batendo atrasado, nem tão pouco adiantado, tudo muito bem compassado, batidas harmonizadas por tanto bem querer.

Importante não esquecer de inocular energia em dobro, afinal este coração vai pertencer a um poeta, tem que ser forte para poder sobreviver.

Agora vamos para o cérebro, detalhes complicados precisam ser alinhavados, tudo muito bem interligado, o racional não pode ser esquecido, é grande a responsabilidade daqueles que têm muito a dizer.

Agora o fígado, o pâncreas, os pulmões, os rins e tudo o mais que ele precise ter. Olhos e ouvidos, bem aguçados para que ele possa sempre perceber.

Importante é não esquecer que todas essas partes precisam ser resistentes, pois costumam ser muito sacrificadas. Vida de poeta é sempre tumultuada, muitos romances, muita paixão, difícil de entender!

Pronto, já está na hora! Podem deixar a magia da lua contaminar todo o lugar. Agora é só deixar nascer.

Só um instante! Mandem chamar dois bons anjos da guarda e recomende sempre muito cuidado, neste, a proteção tem que ser reforçada, não se pode facilitar! Poeta dá sempre muito trabalho, vocês precisam ver pra crer !

NO DIA QUE EU FOR EMBORA



NALDOVELHO

No dia que eu for embora não quero ver em seus olhos a dor que hoje eu pressinto entranhada em você.

No dia que eu for embora quero luz de lua exibida, cheia de graça e enxerida, música ardida e profana, violões impunemente na praça e poetas, muitos poetas, a dizer do amor que eu tenho e do qual nunca abri mão.

No dia que eu for embora quero primavera de versos e que sejam viscerais e confessos, pois só assim terá valido a pena ter desafiado a peçonha dessa inquietude urgente, terrível e armada serpente, da danada da inspiração!

No dia que eu for embora quero madrugada molhada, uma saidera sem pressa, um brinde ao sol que não tarda e as minhas malas repletas de muitas e necessárias sementes, para que eu possa cultivar nos distantes as coisas que por aqui aprendi.

No dia que eu for embora quero um sapato novo e macio, camisa e calça de linho, algum dinheiro no bolso e um beijo de despedida daquela que causou tantas feridas e que fez nascer o poeta que acredita no amor que existe dentro de nós.

E que sejam assim mantidos os laços, escolhas, promessas, pois o amanhã é coisa incerta e ainda que tudo isto nos doa, é preciso continuar com o caminho, mesmo que não saibamos, se um dia vamos conseguir chegar a algum lugar.

MINHA ALQUIMIA



NALDOVELHO

A dor quando silencia,

encravada corpo adentro,
fica latente em nossos guardados,
e cristalizada, só aumenta o tormento.
Eu prefiro não me esconder no silêncio,
prefiro desentranhar-me exibido,
mesmo que em desgrenhados lamentos,
ainda que parindo coisas, assim, doloridas.
Não importa!
Tudo se faz passageiro, até o meu sofrimento!
Não me cabe permitir que a amargura
silencie meus lábios e dê asilo ao desencanto.
Cabe sim, acreditar que o amanhã,
por mais que uma ausência se imponha,
possa me surpreender, sem vergonha,
com uma nova e apaixonada presença
e que esta ao ocupar seus espaços
possa resgatar-me o brilho nos olhos,
e a paixão de viver.
Certamente esta dor que hoje atormenta
e que eu exponho corajoso em meus versos,
vai fazer deste poeta um ser melhor,
posto que, cicatrizados os cortes, as feridas,
e dissolvidas as mágoas da vida,
vai saber amar sem sofrer.
Esta é a minha alquimia
e eu a exerço em despojados poemas,
pois esta é a missão que de resto me coube,
e eu a exerço sempre, e sempre,

com redobrado prazer.

MEUS POEMAS



NALDOVELHO

Nem todos os poemas são bons!

Alguns são apenas bons,
outros nem são bons,
alguns poucos muito bons.
Coisas de um eterno aprendiz!

Mas sempre valerá a pena

escrever muitos poemas,
exorcizar os demônios,
dizer da dor e do engano,
falar do desencanto e do abandono,
do desencontro e da solidão.
Coisas do desamor!

Mas podem acreditar:

sempre valerá a pena
escrever muitos poemas,
alquimizar de vez nossas mágoas,
transformando-as em compreensão,
falar do amor e do perdão,
da magia da sedução.
Coisas da esperança e da redenção!

Pois sempre valerá a pena

escrever muitos poemas,
descortinar o passado,
reescrever o futuro,
trilhar com muita coragem
uma nova trajetória.
Coisas de quem acredita na vida!

Pois sempre valerá a pena

escrever muitos poemas,
desentranhar o estranho
que mora dentro de nós.

E mesmo que nem sejamos poetas,

mesmo que nem sejam poemas,
sempre valerá a pena.

LUZ



NALDOVELHO

Por favor, acenda a lâmpada,
se não puder, acenda a lanterna,
também serve à luz de vela,
é que eu quero ver o teu rosto,
me embriagar na nudez do teu corpo,
depois, quero esquecer minhas mãos
apaziguadas em teus seios.
Quero me embaraçar em tuas teias,
quero as tuas presas

enterradas em minhas veias,
alimentar-te com o meu sangue.
Quero morder teus lábios, e beijar teu pescoço,
quero tua boca, quero sugar tua língua,
beber teu suor, tua saliva,
quero todas as coisas indecentes,
aquelas próprias entre amantes.
Quero olhar dentro dos teus olhos
e te ver ter muito prazer,
por ver toda a casa em chamas,
por filetes em brasas espetados,
por marcas viscerais, profundas marcas,
dessas que nunca mais vão cicatrizar.
Por favor, não deixe escurecer,
mantenha a vela acesa.
Não permita que surja o pecado,
não deixe renascer o passado,
nem permita que o futuro nos leve
para algum lugar longe daqui,
onde só restarão as lembranças
e os nossos cortes não cicatrizados,
que volta e meia vão arder,
vão sangrar, vão doer.

O CICLO DOS VERSOS



NALDOVELHO

A espera inquietante, o amanhã que não chega,
as horas tão lentas, grudentas, sedentas,
o instante presente preso ao passado,
e as janelas da casa permanecem fechadas.
Lá fora um anjo avalia os estragos,
aqui dentro um demônio, estiagem de sonhos.
Lá fora um vento sacode a cidade,
aqui dentro calmaria, nostalgia, saudade.
Uma garrafa de vodka, já pela metade,
papeis espalhados pelo chão do meu quarto.
Palavras recolhidas, reprimidas, indispostas,
poemas abortados ou colocados de lado.
A campainha da porta, faz tempo não toca
e o meu telefone quando toca é engano.
Lá fora o vento trouxe chuva bem forte,
aqui dentro calmaria trouxe medo da morte.
E insônia insistente avisa que é cedo,
vidraça embaçada, cidade nublada,
o rádio ligado, sintonia em desterro
e a música que toca revela segredos,
remexe em guardados, cicatrizes ardidas.
Lá fora o tempo melhorou e amanhece,
aqui dentro a chuva desperta e anoitece.
São águas que escorrem, recém nascido o poema,
ainda bem que os versos arrombaram comportas,
não mais cristalizados, represados em mim.
Lá fora um anjo sorri satisfeito,
aqui dentro o poeta se aquieta e dorme.

sábado, setembro 16, 2006

TRAGICOMÉDIA



NALDOVELHO

Estreitas passagens impedem a viagem,

retardam o regresso do pecador confesso,
que envolto em chamas busca e clama
pela misericórdia do perdão.
Promete reformas, se empenha e ora
e diz que agora vai ser diferente.

Enroscada num canto a serpente observa,

sibila satisfeita, sorri de prazer.
É muito o veneno que ainda existe em seu ser.

A platéia entretida assiste ao espetáculo,

querubins pervertidos, excitados pedem bis.
Estranho personagem que em insólita viagem,
rasteja pelo palco, comete bobagens,
embriaga-se do veneno, interpreta um selvagem
e iludido pelo aplauso se diz um aprendiz.

Na coxia, excitado, um arcanjo safado ri do infeliz.

São muitas as teias, são muitos os dramas,

coadjuvantes reclamam melhor papel nessa trama
e revoltosos proclamam o fim do espetáculo.
A platéia silencia, não entende o enredo,
não percebe que a morte é a grande atriz.

E o nosso personagem sai às pressas do teatro,

vai a busca de um outro palco onde possa ser feliz.

TATUAGENS



NALDOVELHO

Mais ou menos a um palmo e meio,
acima do umbigo, um beija-flor atrevido,
escondido entre os seios, espreita o perigo
e me prepara uma tocaia.
Beija-flor sabido escolheu bem o abrigo
e ali fica, tal qual tatuagem,
a desafiar-me a coragem de dar vazão ao desejo
de saciar minha sede no mel que eu prevejo
existir mais ao lado, em qualquer uma das fontes
que abusadamente eu almejo.

Mais ou menos a um palmo e pouco,
abaixo do umbigo, mais para o lado esquerdo,
reside um dragão, também tatuado,
sentinela desaforada, a me avisar do perigo.
Dragão destemido, guardião que protege,
nas bordas do abismo, a fonte das águas que eu colho,
quando parte de mim fica, totalmente,
abrigado durante o prazer de te ter.

Só lamento não ter percebido a tempo,
escondida, no canto dos lábios, insidiosa serpente.
Agora é tarde, inoculada a peçonha,
só me resta a embriaguez.
E nada mais há, que eu possa ou tente,
só me resta pedir clemência
para que não me mates de prazer.

quinta-feira, setembro 14, 2006

LUZES



NALDOVELHO

Velas acesas iluminam o altar,
visão sombria da tua imagem,
Teu corpo nu, martirizado, petrificado,
quantas feridas latentes,
hoje expostas na cruz.
Velas acesas encomendam o passado,
Teu corpo acabado pela morte tomado,
resgate de uma história manchada de sangue.
Velas acesas iluminam a história,
Teu corpo morto, estendido no chão,
envolto num manto,
que alguém chamou de mortalha.
Em torno da cena, lágrimas sentidas,
tanto remorso, promessas veladas,
tantas derrotas, segredos guardados.
Velas acesas iluminam o cenário,
a ira de Deus, mudança dos tempos,
nos olhos descrentes o medo, o espanto,
já faz tanto tempo e eu continuo aqui.
São preces aflitas buscando o remédio
que cure as chagas dos irmãos desvalidos,
que aplaque a dor do irmão oprimido,
que mude o cenário e nos traga a luz.

VERSOS CONFUSOS



NALDOVELHO

O poema que eu não escrevi,
a ferida que volta e meia incomoda,
coisa feita pra doer, mal resolvida.
A tapeçaria inacabada no quarto,
a última dose de conhaque,
o café bem quente e doce,
o cigarro aceso entre os dedos,
cacos de vidro espalhados,
por todos os cantos da casa.
O trem que eu não tomei,
a mulher que eu muito amei e quê,
como água, escapuliu-me entre os dedos.
O navio que partiu pra bem longe,
a saudade doída e confessa
e a lágrima no olho esquerdo,
que ameaça chorar, mas tem medo.
Um sorriso a disfarçar meus segredos,
inquietude entranhada na alma,
loucura que eu trago reprimida.
E a artéria continua entupida,
congestionamento na via expressa.
O Pai Nosso numa prece
e o sinal permanece fechado.
O livro de contos?
Faz tempo não pego!
Hoje em dia só escrevo poemas.
Alguns deles, nem são poemas!
Parecem mais amontoados, confusos,
de versos estranhos, profusos,
que por mais que eu tente impedir,
rebelados que são, teimam em surgir.
E a ampliação da casa continua num esboço.

quarta-feira, setembro 13, 2006

VERSOS BASTARDOS



NALDOVELHO

De uma relação promíscua
entre o sonho e o verbo,
nasceu de forma transversa
um poema de versos indigentes
que rebelados e urgentes
por desencontradas rimas
e métricas incoerentes,
foi denominado bastardo
por críticos reticentes.
E por estar impedido ao nome,
ao ser considerado espúrio,
foi chamado de prematuro
e de prosa em versos incandescentes.
Que assim rejeitado pôs-se a falar na vida,
de tudo aquilo o que se sente,
com a linguagem da minha gente
e de um jeito franco e desavergonhado,
sem regras e sem limites,
principalmente destrambelhado
e visceralmente ousado.

Ainda que mestiço,
mulato, caboclo, cafuzo,
e algumas vezes,
um tanto ou quanto confuso,
esta é a minha vertente
e tem a cara de um Brasil bem matreiro
que mistura piano de calda e pandeiro,
zabumba e violino em terreiro,
se bobear, caviar com cachaça
e muita mulata suada na praça
só pra dar água na boca
e um desconforto danado
toda a vez que ela se põe a sambar.
Cravo, pimenta e canela,
só pra nos infernizar.

A minha vertente inventa caminhos profanos
por pura irreverência ou pirraça,
desafia zombeteiro e esculacha
aqueles que tentam me aprisionar.

VERSOS MAL COMPORTADOS



NALDOVELHO

Versos mal comportados,
colaterais e indecentes,
parte deles descendentes,
raras vezes ascendentes,
tipo inquietude da alma,
coisa estranha, complicada.
Costumam ser revoltados
e espumam pra todo o lado,
feito líquido efervescente,
imprudentemente derramado.
Melhor tomar cuidado,
queimam como aguardente!

Se paridos desordenados,
preferem arrombar as portas.
Não se dá conta o poeta,
das entranhas destrambelhadas,
do limite que eles pretendem.

Parecem mais sortilégio,
flor cultivada no brejo,
mandinga, despacho ou feitiço
e não há como acabar com isso!
Herança maldita que o tempo semeou.
E que ainda assim constroem poemas:
de elegia ao enamorado
que sucumbiu apaixonado
pela mulher do vizinho do lado,
pela ninfeta fogosa e ardente,
ou pela mulher madura de frente.

Versos desgovernados,
ventania que fustiga o rochedo,
castelo tomado em noite de lua cheia.
Maré vazante na praia,
melhor se entregar à sereia
do que ficar assim, se agitando,
sem eira, nem beira.
Melhor morrer de paixão,
antes que seja tarde.
Melhor que seja em versos,
e que sejam, mal comportados.

NÃO HÁ NADA DE NOVO NAS HORAS



NALDOVELHO

As folhas destoam, pálidas, sem vida. Palavras caladas permanecem reprimidas. Não há nada de novo nas horas, que sem consolo já não agüentam, os dias que se arrastam sonolentos. Vida, à-toa, repleta de constrangimentos.

O sangue, que corre em meu corpo, tropeça viscoso por artérias e veias. O ar penetra em meus pulmões, saturado de fumaça, e o cigarro, que eu trago: cada vez mais amargo. Não há nada de novo nos horas, nada que se diga me consola e as manchetes dos jornais repetem as notícias de sempre: uma baleia encalhada na praia agoniza e morre; o trânsito engarrafado: desespera, dilacera. Um navio a deriva que não encontrou o seu cais, vaga sem timoneiro, partiu faz tempo, não voltou nunca mais; na estação um trem que não parte, dormentes sem trilhos, sem trilhas, caminhos.

Todos os dias, à mesma hora, a noite chega e implora, quer lua cheia de volta, quer esquinas repletas de gente, quer crianças brincando nas ruas, mas as ruas continuam incertas, povoadas de sombras que aterrorizam nossa gente.

Em suas casas, meu povo se esconde, adormece e não descansa, vive esperando notícias, malfadadas dores urgentes. A sirene de um carro avisa: mais um que ousou e partiu; ousou andar pelas ruas, ousou não resistir ao assalto, se preocupar com seus filhos... O gatilho apressado viu reação e puniu!

As pessoas silenciam e choram, por desespero levantam bandeiras, alertam quê, de oportunistas, já estão cheias, que a classe política é um engodo, omissos, coniventes e certamente cúmplices dos crimes perpetrados. Quanto tempo, mais, poderemos resistir? Quantos dos nossos filhos, prematuramente, vão ter que partir?

Não há nada de novo nas horas, nada que se diga me consola. O meu Santo Padroeiro está refém, é prisioneiro! Libertem o meu São Sebastião, aquele do Rio de Janeiro!

Ao fundo a imagem do Cristo a tudo assiste e diz: perdoa-os Pai, eles não sabem o que fazem!

ESTIAGEM



NALDOVELHO

Estiagem de versos,

securas, ardências,
de noites sem lua,

que envergonhada se esconde.
Para onde foi a amante,

a musa indecente?
E poeta romântico

por onde se esconde?
Poemas estranhos,

cristalizada a essência,
as teclas do piano,

emudecidas, não soam...
Gasturas da vida,

calmaria dos ventos.
A lágrima que não escoa,

que vacila reticente.
O sonho de um tolo,

já não se faz mais urgente.
E os segredos de alcova

confessados entre os dentes?
São sussurros doídos,

grunhidos latentes.
Por onde andará a poesia

que brotava em vertentes?
Quem sabe da semente

lançada ao vento?
Procura-se um tempo

de prendas, presentes,
de novembros tão fartos

e desavergonhadamente tão quentes.
Procura-se um romântico

e um coração descuidado.
Procura-se um tolo,

um poeta descrente.

segunda-feira, setembro 11, 2006

NOTURNO



NALDOVELHO

Foi sem o menor aviso! De repente a porta se abriu, não abruptamente, suave e lentamente. Ela invadiu-me o quarto com ares de quem sabia o que buscar e principalmente onde encontrar. Eu nada disse, também nem podia, as palavras soterradas diante daquela imagem tão bela e ao mesmo tempo tão estranha. Um forte pressentimento de que algo estaria por acontecer, algo que eu ainda não entendia, mas francamente, não tinha a menor vontade de evitar.

Perfume, discreto, delicioso e envolvente, tipo embriaguez disfarçada, e inclementemente desejada. Foi assim que aconteceu!

Algumas palavras, doces palavras, um olhar penetrante, e uma vez mais, eu nada conseguia dizer, nada me ocorria e o silêncio era naquele instante, a atitude mais sensata diante daquela atmosfera de mistério e prazer.

Percebi num relance que ela já se punha descalça a caminhar de um lado para o outro, como se estivesse me estudando, premeditando seus próximos passos. Fechou mal fechada a cortina, apagou as luzes, deixando apenas e tão somente ligado, um pequeno abajur de sedutora penumbra, que junto com a luz da lua que penetrava pela janela entreaberta, me permitiam a visão daquele momento, raro, precioso e sagrado.

Uma vez mais em silêncio, só me restou respirar profunda e pausadamente e continuar olhando, saboreando, me embriagando até não mais poder. Movimentos provocantes, num jogo de luz e sombra a enaltecer-lhe o corpo e uma música suave a brotar das paredes, do teto, do chão, de todo o quarto. Metais em surdina e um blues bem temperado, impiedoso e visceralmente mal intencionado.

Primeiro a alcinha de um vestido meio transparente, generosamente decotado, depois a outra, e meio assim como por querer ela se aproximou. Olhar ainda mais envolvente, o bico do seio esquerdo a se mostrar contundente a desafiar-me o silêncio, o outro seio, meio assim escondido, porém não menos ousado, a impedir a queda do vestido, que num ligeiro contorcer de ombros revelou toda a sua intenção.

Ela dançava em minha frente, minhas mãos trêmulas, busquei-lhe o corpo, cada vez mais excitado, já não mais existiam roupas, apenas uma pequena peça, última fronteira, última barreira. Meus pêlos arrepiados, ao perceber aqueles pêlos deliciosamente anunciados.

Minhas mãos incontidas, lentamente em suas coxas, em suas nádegas, em seu colo. Um conveniente lacinho, que se desfez com carinho e revelou por inteiro o caminho encantado e ansiosamente desejado. Beijei-lhe os lábios, ambos, com muito amor e cuidado, beijos longos e molhados.

Percorri com a língua, todas as dobras e lados, rocei com os dentes o bico do seio esquerdo, salientemente excitado. Já não mais reconhecia as minhas pernas, embaralhadas com aquelas outras pernas e me sentindo assim como uma muralha, que fora, ultrapassada... Derrotado eu tombei, entregue a tamanha sanha.

Mantive apenas os olhos entreabertos, não poderia perder tal cena, ver aquela mulher cavalgando, usando e abusando do meu corpo, até chegarmos ao orgasmo, um longo e demorado orgasmo e que deixou fortemente impregnado em meus poros, aquele cheiro e em minha pele a sensação do roçar de corpos, quentes, molhados, melados, coisa que eu nunca mais vou esquecer.

Ainda me lembro bem! Lá fora a noite ia alta, abri as cortinas e percebi que a lua havia se posto tal qual sentinela em frente a minha janela. Olhei de novo para a cama para saborear mais uma vez aquela imagem, esperando encontrá-la adormecida, abraçada em meus lençóis...

Para o meu sofrimento e espanto, lá não havia ninguém. Não havia mulher alguma em meu quarto. Eu estava só, irremediavelmente só! Eu e minha loucura, eu e o meu desejo de que aquele ser, misto de feitiço e miragem, voltasse e dissesse: te amo! Nada, não havia nada, nada aconteceu. Foi tudo um pesadelo, ou um sonho, sei lá!

Talvez o nome dela seja insônia, talvez solidão, quem sabe se chame saudade de alguém que eu nem sei se conheço ou se um dia vou conhecer.

QUERIA PODER ESCREVER UM POEMA



NALDOVELHO

Queria poder escrever um poema, um único e derradeiro poema, um que falasse aos corações e mentes e que fosse capaz de transformar as pessoas, fazendo-as menos cínicas, menos frias e descrentes.

Queria poder escrever um poema, um único e verdadeiro poema, que fosse capaz de nos revelar todo o mistério, que nos mostrasse que a alquimia dos tempos é o mais claro sinal da renovação.

Queria poder traduzir em versos toda a magia de uma madrugada em seus braços, com lua cheia a testemunhar em silêncio coisas que a mais ninguém é dado o direito de ver.

Queria poder escrever um poema que mostrasse a beleza do sol amanhecendo lá fora, todos os dias, já faz tanto tempo... Não conheço manhãs tão lindas como as que eu já vi por aqui.

Queria poder traduzir em palavras a nostalgia de um entardecer, numa beira de praia, com brisa macia acariciando o meu corpo, e o barulho das ondas a emoldurar o silêncio... Que bom que você é capaz de entender!

Queria poder escrever um poema, um que fosse o mais contundente dos poemas, que pudesse nos mostrar em versos uma fonte cristalina, uma nascente, águas de um rio, águas do mar, nuvens escuras, sinal de tormenta, chuva inclemente a fecundar a terra, a fertilizar o solo, a germinar a semente... No ciclo das águas um soneto a ressurreição!

Queria poder escrever um poema, um lindo e definitivo poema! Como não posso e por que ainda não sei, só me resta rabiscar este texto, um rascunho apenas! Um projeto de poema que, tomara Deus! Um dia eu possa merecer escrever.

UM ANJO CAÍDO



NALDOVELHO

Um anjo caído invadiu minha casa,
abriu meus armários, mexeu nas gavetas
e espalhou pelo chão meus guardados.
Rasgou poemas e livros,
arranhou antigos discos de vinil
e jogou pela janela todos os meus CDs.
Não satisfeito: comeu da minha comida,
bebeu da minha bebida, vomitou no tapete,
e dormiu embriagado na poltrona da sala.

Ao amanhecer de ressaca e mal humorado,
avisou quê, de agora em diante seria assim,
pois tudo aquilo que eu pensei que me pertencia,
não era, realmente, meu por força de lei.
E se eu não me desse por satisfeito,
que arrumasse minhas malas
e fosse morar em outra casa,
melhor seria num outro país,
e que lá escrevesse novos poemas,
comprasse novos livros e CDs.

Na vizinhança corre o boato
que outras casas foram invadidas
e que a polícia, por serem anjos,
em nada poderia ajudar.
Que país é esse que querem que eu vá morar?
Eu mal sei falar português!

domingo, setembro 10, 2006

ROTA DO DESASSOSSEGO



NALDOVELHO

Rota do desassossego:
caminho trilhado em segredo
por ruas estreitas, esquinas desertas,
por noites chuvosas, esperas, insônia.
Na busca de um sonho,
uma janela que teime
em permanecer entreaberta,
um lugar onde eu possa sorrir.
Rota do desassossego:
por passagens camufladas,
estranhas, sombrias...

Num bar chamado desterro
um garçom atende nervoso,
não pergunta se eu quero beber,
vai servindo a mais pura aguardente.
Não pergunta se eu quero comer,
entrega a conta antes que eu possa fugir.

Rota do desassossego:
a loucura, o vazio, o desejo,
e no fundo do bar um bolero,
um sussurro, um quero não quero,
um sorriso amarelo e indecente,
e o veneno escorrendo dos lábios,
uma porta, o perfume, um atalho,
um lugar onde eu possa mentir.

Rota do desassossego:
amanhecer de maio, é outono,
inquietude, incerteza e abandono.
Pago a conta e saio às pressas,
chorando a dor que em mim é confessa,
dor de escolhas ainda latentes,
brotam em versos pesados, dispersos.

Vou pra casa e tento dormir.

sábado, setembro 09, 2006

SINFONIA ESTRANHA



NALDOVELHO

Na força dos ventos, sinfonia estranha,
sudoeste se assanha, ressaca de versos.
O cheiro de terra, o inverno lá fora,
a certeza que a hora não tarda a chegar.
As minhas sementes florescem aqui dentro,
dão frutos sadios, de polpas tão tenras,
remédios que o tempo há de preservar.
Poesias, lembranças, miragens, bobagens,
fartura de sonhos sem nenhum cabimento,
mas que dão crescimento, não adianta negar.
Escolhas que eu tive, por falta de escolhas,
caminhos trilhados sem constrangimentos.
A forja de um homem de pele morena,
de olhos castanhos e com um pé no além mar.
Sinfonia de versos, amores passados,
feridas latentes, ainda presentes.
Estranho ofício, poesia que arranha,
inquietude tamanha a me assombrar.
Lá no fundo do meu eu um precipício,
e um animal acuado querendo se libertar.
Mas no coração mora um anjo, menino e travesso,
poeta que eu tenho guardado em meu peito,
que toda a vez que eu choro
derrama um poema pra me consolar.
Sinfonia tamanha, rebelada e estranha,
que transforma as trevas em noite de lua
e depois amanhece, embora me doa,
o sol acontece pra me renovar.
E o animal adormece embalado em meus versos,
sons que eu confesso, cantigas de ninar.

TAROT HEREGE



NALDOVELHO

Cartas postas mostram o louco
a percorrer descaminhos
e o eremita, o peregrino,
a tudo assiste e fica rindo.
Enquanto o mago desconversa
e se apressa em seu destino,
vai a busca da justiça
que o papa encomendou.
Outras cartas mostram a morte
de braços dados com o diabo
e o pobre do enamorado
encarcerado numa torre,
Paixão confessa em versos
por aquela que o enforcou.
Passa o tempo e outra mandala,
mostra o carro desgovernado
mostra o sol beijando a lua
e a sacerdotisa, louca e nua,
a seduzir o imperador.
Mostra a roda da fortuna
a triturar a imperatriz
que o mundo inclemente
transformou em meretriz.
E no dia do julgamento,
a temperança revoltada,
mostra a força de uma estrela
a descortinar o firmamento
e as seqüelas desta vida
que o tempo não curou.

VENDE-SE UMA ILUSÃO



NALDOVELHO

Cortinas rasgadas, janela entreaberta,
sala sombria, estranha, inquieta.
Sobre a mesa de centro, num vaso de flores,
rosas murchas, faz tempo.
No fundo da sala, quadros amarelados,
retratos de família, lembranças de um passado.
Na parede ao lado, numa estante,
livros, empoeirados, fechados.
Deitado num sofá um siamês
lambe as patas, e a tudo observa...
No canto da sala, numa pequenina mesa,
um abajur aceso, pálida luz, tristeza.
Por uma porta que liga, a sala ao corredor,
dois quartos dispostos, opostos, fechados
e um pequeno e aconchegante banheiro.
No final do corredor, espaçosa cozinha,
porta dos fundos e um amplo basculante,
de onde se pode ver, num quintal mal tratado,
árvores hospedeiras de orquídeas e trepadeiras.
Na frente da casa, numa pequena varanda:
samambaias, bromélias e uma espreguiçadeira.

Rua Noronha Torrezão, já nem lembro o número,
pois o que restou em minha mente
foi uma pequena placa afixada no portão:
VENDE-SE UMA ILUSÃO!

NOVAMENTE CRUCIFICADO



NALDOVELHO

O cheiro de asfalto, o sinal, o assalto, a buzina dos carros e a urgência alucinam, até hoje padeces em loucas chacinas.

O cheiro de cola, o menino, a esmola, caco de vidro espetado, sangue no chão, a cusparada no rosto, a bofetada, o desgosto, dilaceram os espinhos cravados no corpo.

O gosto amargo, o olhar injetado, na subida do morro, o fuzil, o desgosto, engatilhadas as armas, a sirene, o sufoco. Ela ainda é uma menina, que triste sina!

Até hoje padeces da dor que acontece na bala perdida, lá se foi uma vida. Na demência que implora uma prece em vão, pois as portas dos templos permanecem fechadas.

A fome acontece, encruzilhadas que ensinam que a mão do mais forte explora e elimina a quem possa interessar salvar a menina. Prostituiu-se tão cedo e virou avião. E o menino, um soldado de punhos fechados, de arma na cinta, vai fazer um estrago...

O traficante sorri da inocência perdida, faz pouco dos desfiles, passeatas, cartazes, já é um pouco tarde pra dizer eu não quero, o acerto de conta não tarda a chegar.

Até hoje padeces por curar meus pecados, cidade nublada, cidade do medo, o cheiro de asfalto, o sangue, o segredo, não faz muito tempo procissão do Senhor Morto passou por aqui e me trouxe conforto?

Não faz muito tempo, no centro da praça, alguém riu da desgraça, do ultimato, da ameaça. E o Teu corpo tombado, humilhado, ferido.

Quanta miséria e o meu povo nem olha, mas assiste ao filme... Paixão de Cristo, o Calvário, a mensagem ao contrário! Depois, quem sabe um calmante? Muda de canal, assiste o noticiário e vai dormir.

POEMA DILACERADO



NALDOVELHO

Por saberes, segredos, essências,
sacramentos, sagradas sementes.
Sangue, suor e saliva,
saboreados assim indecentes.
As lágrimas que eu trago comigo,
são salgadas, veneno latente.
Silenciosa e insidiosa serpente
que na tocaia sibila contente.
Um bardo a buscar um consolo
num poema feroz e indecente,
cantou cantigas de um tolo,
afogou-se em tonéis de aguardente.
Um palhaço lamenta e chora
a desdita de um ser tão descrente.
A poesia que eu trago comigo
já não jorra da mesma nascente.
Profanei os meus templos, faz tempo,
naufraguei bem próximo ao cais,
soçobraram os meus sentimentos,
só restaram alguns poucos ais.
Saberes, segredos, sementes,
sangue, suor e aguardente,
gotejando do canto dos lábios,
letras frias demais!
A poesia que restou sem abrigo,
versos tortos paridos gemidos,
só destoam e ainda que doam,
não conseguem trazer-me à paz.

sexta-feira, setembro 08, 2006

HÁ DE EXISTIR UM TEMPO



NALDOVELHO

Há de existir um tempo de perfeito entendimento entre a árvore e o vento que soprará assim tão macio a acariciar as folhas, e onde flores e frutos se eternizarão contentes, pois serão colheitas perenes do amor que existe em nós.

Há de existir um tempo onde a noite e as estrelas emoldurarão a lua que tão desavergonhada testemunhará satisfeita o sentimento jorrando e tomando conta de nós.

Há de existir um tempo onde a emoção será sempre o alimento mais puro dos nossos poemas, e as lembranças existentes serão sempre boas, amigas, coisas de nós dois, e onde eu possa confessar que o amor é o presente mais valioso que eu tenho para ofertar.

Há de existir um tempo onde não existirão distâncias, onde minha mão, simplesmente, possa acariciar teus cabelos, teu rosto, teu corpo, sem ter que me preocupar que o mundo me chama lá fora, que infelizmente já é hora e eu não posso mais ficar.

Que esse tempo venha depressa, é tudo o que eu quero agora, pois hoje o poeta implora, lamenta a ausência e chora em versos o que ele sente.

LADO ESQUERDO DO PEITO


NALDOVELHO

Trago, guardado, faz tempo,
primeira gaveta, lado esquerdo do peito,
um poema molhado de veneno e orvalho,
por madrugadas insones, amanhecer sonolento,
já que até os versos que eu tento
não conseguem dissolver minha dor.
Trago, guardadas, reclusas,
segunda gaveta, lado esquerdo do peito,
sonoridades estranhas, dissonâncias tamanhas,
tem dias boleros, e sempre cubanos,
em outros são tangos, viscerais e profanos,
muitas vezes chorinhos, valsas, toadas,
e em especial Janis Joplin,
que quando passou por aqui,
deixou de presente um blues.
Trago, muitas coisas, faz tempo, guardadas,
terceira gaveta, lado esquerdo do peito,
coisas preciosas, sagradas,
retratos, cartas, bilhetes,
pedrinhas mareadas pela força das águas,
coisas cristalizadas que ainda incomodam,
um vidrinho de essência, o perfume: alfazema,
algumas cicatrizes, vez por outra, ainda doem,
um livro de poemas: Carlos Drumonnd de Andrade,
um outro de contos: Herman Hess.
Trago, faz tempo, arquivados,
quarta gaveta, lado esquerdo do peito:
exatos, cinqüenta e cinco outonos
e uma chave presa a um cordão de ouro,
só não sei, ainda, qual porta ela deve abrir.

VIRADO DO AVESSO



NALDOVELHO

Amanheço virado do avesso,
vísceras expostas denunciam o cansaço,
poemas espalhados por todo o quarto
e sobre a cama um emaranhado de artérias e veias.
Por onde andarão meus olhos?
Meu coração já nem tenta disfarçar,
bate descompassado na lembrança do teu olhar.
Perto da janela meus pulmões buscam um espaço,
uma rajada de vento põe tudo em seu devido lugar.
Por onde andarão minhas pernas?

Manhã com cheiro de inverno e chuva fria lá fora.
Minhas mãos congeladas já nem tentam
materializar o carinho dos versos que eu choro.
Tão lentas as horas e eu nem sei onde estas!
Por onde andará meu pensamento?
Em que terras ele se fez forasteiro?
E o meu sonho por onde andará?
Continuo virado do avesso
e não sei como me consertar.

VISCERAL E PROFANA



NALDOVELHO

Trago a alma marcada
por trilhas, espinhos, tocaias,
madrugadas solitárias, silêncio,
lembranças de outros tempos
sangue, suor e aguardente,
e em minhas costas, feridas,
o chicote inclemente do vento.
E a poeira... A poeira da estrada,
entranhada pra sempre em meus poros.

Trago em meus olhos a dor
de um passado no exílio:
solidão, culpa, vergonha,
por feitiços conjurados, faz tempo,
e na cintura repousa uma adaga,
até hoje suja de sangue,
por batalhas travadas nas sombras,
sem sequer conhecer o inimigo.
Escolhas feitas pelo caminho,
algumas delas foram erradas.

Trago as mãos calejadas
pela colheita da uva e do trigo,
pelo talho nas pedras que eu trago,
esculpir, lapidar, revelar.
E mais sangue, suor e aguardente,
poemas, cantigas, imagens,
nostalgia, saudades, miragens,
inquietudes de quem procura
desfazer pela vida o mal feito,
construir um novo momento.

Trago na pele asperezas,
na fala delicadezas,
nas veias muita aguardente,
sangue viscoso, fumaça,
vestígios de ervas daninhas
semeadas impunemente, ou quase!
E o corpo hoje reclama,
mas continua teimosamente,
na dança do tempo que implora
por música, refrigério da alma,
por poesia visceral e profana.

CORPOS ENTRELAÇADOS



NALDOVELHO

Sorrisos, olhares, odores, texturas...
palavras cálidas, tão ávidas, ternuras,
carinhos insanos, profanos, procuras,
janelas fechadas, inquietudes, loucuras,
verdades expostas, dispostas, ardidas,
línguas embaraçadas, querências paridas,
lágrimas tontas, choradas espremidas,
o silêncio e o sonho a forjar nossas vidas.

Minhas pernas destoam, embaralhados os passos,
suas marcas tatuadas a ferro e fogo em meus braços,
lacunas, vazios, preencher os espaços,
deixei em seu leito minhas marcas, meu rastro,
na procura de outras vias, concretas, confessas,
que me levassem pra dentro e que fosse depressa,
pois nada mais o quê se diga sobre nós interessa!
Melhor mantermos apertados os nós que nos restam.

Cortina entreaberta a tarde anoitece
e o silêncio revela o sussurrar de uma prece.
Ao som de um piano um coração que se aquece,
se contraí num orgasmo e depois adormece.
Não deixe a semente lançada a esmo,
não levo mais nada além da dor de mim mesmo,
dor de poesia que sobrevive e me assanha,
na madrugada de versos que ao meu corpo se entranha.
São versos molhados, cadenciados, ousados,
com rimas perfeitas de corpos entrelaçados.

NÃO SOU POETA


NALDOVELHO

Não sou poeta, sou exorcista.
Exorcista dos meus próprios demônios!
E o faço através de versos,
repletos, ardidos, confessos,
que curem antigas feridas,
que me desentranhem os ais.
Não sou poeta, sou mestiço!
Mulato, caboclo, cafuzo,
miscigenados os versos, confuso,
sem medidas métricas ou rimas,
confessadamente insano,
por conflitos estranhos, tamanhos.
Não sou poeta, sou descoberta,
de versos paridos revoltos,
espremidos pela dor e esforço
de deixar vir à tona, coisas viscerais...
Que por mais que eu negue
incomodam e arranham.
Não sou poeta, sou esboço,
de embaçadas e controversas imagens,
contornos sombrios, viagens,
cicatrizes, sinais, tatuagens,
palavras forjadas selvagens,
e a ferro em fogo, profanas.
Não sou poeta, sou inquietude!
Sou buscador de amplitudes,
rastilho de coisa explosiva,
ventania que venta por dentro
e derrama sem constrangimento
sementes doídas demais.

quarta-feira, setembro 06, 2006

FERIDA DE MORTE



NALDOVELHO

Ferida de morte a palavra se contorce,
se arrasta e agoniza.
E num último alento, desanimada, nos avisa:
faltam ainda escassos poemas,
sentimentos confessos a serem materializados
em versos, epitáfios, doloridos, perversos,
que eu nem sei se valerão a pena.

Melhor nem serem lidos!
E se lidos, melhor não levá-los a sério,
pois as letras se dispõem raivosas,
embaralhas e teimosas se negam
a nos mostrar solidárias,
os seus mais preciosos segredos.
E por tudo que acredito sagrado,
eu me recuso a desentranhar-lhe meus medos.

Melhor seria então o silêncio,
pois sem nexo se fez o enredo
que por piedade precisa ser desfeito.

O que será do poeta
que não encontrou a chave da porta?
O que será do poeta
que na vida não mais se importa?
O que será do poeta
que não consegue abrir as janelas?

Sei não!
Epitáfio nenhum tem sentido
com as letras, desta forma, indispostas.

Por que a palavra foi morta?
Por que tamanho castigo?

domingo, setembro 03, 2006

QUERO QUEBRAR A VIDRAÇA



NALDOVELHO

Quero quebrar a vidraça, arrombar a janela, mergulhar sobre a praça, assustar a quem passa. Lá tem banco de areia, é só brincadeira, não vai machucar!

Quero romper estes laços, deslizar no escorrega, mergulhar no espaço, levitar no balanço. O meu passado eu alcanço, bola de gude ou de meia, o pião, a fieira, brincadeira de esconde, me perdi, nem sei onde... Quanta saudade no ar!

Nunca gostei de atiradeira! O passarinho, o ninho, uma puta bicada, um susto e um tombo. Quem mandou bisbilhotar? Só sei que valeu a pena ver os pequeninos no ninho, acho que ali nasceu um poeta, filho do encanto e da dor.

Viver trepado em árvores, colhendo o fruto maduro, sapoti, jambo, amora, é só pular o muro e o vizinho nem briga. No meu quintal tem goiaba, lá no morro pitanga...

- Desce daí menino, não vá se machucar!

Daqui a pouco escurece e o morcego aparece, parece um rato com asas, melhor descer desta árvore, despular este muro e ir brincar em outro lugar.

Quero o joelho ralado, quero o pé destroncado, estava brincando de pique, pisei num buraco mais fundo e aí caí de maduro, acho que eu vou ter que engessar!

Quero a inocência de ontem, quero a primeira namorada, de mãos dadas, tão trêmulas. Quero as coxas da priminha, eram quentes, molhadas, o seu nome eu não digo, não posso revelar. O despertar do menino, já faz trinta e muitos anos, aqueles cabelos tão negros, e os seios? Ah! Os seios... E aquele monte de pelos, lá se foi a inocência! Fiquei alucinado, não sabia fazer direito e ela teve que ensinar. Só não perdi a ternura e a poesia do instante que eu guardei em meu peito. Foi um pecado tão doce, não dava pra recusar.

Quero o primeiro amor e desta feita sem dor. Quero o banco da escola, quero a turma do Liceu, quero a turma da esquina, quero varar a madrugada jogando conversa fora. Quero tocar violão, quero compor mais uma canção que fale de amor e de paixão. De sofrimento não, quero as coisas dando certo. Neste sonho as coisas têm que dar certo

Quantas lembranças guardadas, quantas vidraças quebradas, quantas janelas e portas estupidamente arrombadas. Ainda me restam os poemas. Sonhar vale a pena! Reinventar minha vida, caminhar com cuidado, para não matar o menino que ainda existe em mim.

sexta-feira, setembro 01, 2006

HERANÇA



NALDOVELHO

Vou deixar de herança
o silêncio dos meus versos
e mesmo os que já foram escritos
desaparecerão por completo.
Vou deixar um violão sufocado
e cantigas que só eu sei,
caladas lá dentro de mim.
Se perguntarem o porquê?
Digam que por clausura
o poeta calou sua loucura
e não mais ousou seus poemas.
Vou deixar também telas brancas
de imagens que eu nunca pintei,
matizes ausentes, omissos
por lágrimas que eu não chorei.
Vou deixar portas fechadas,
gavetas vazias trancadas,
segredos não revelados,
histórias que eu não contei.
Vou deixar uma lacuna imensa
de sementes não germinadas,
de terra árida e descrente
dos sonhos que um dia eu sonhei.

INCOERÊNCIAS



NALDOVELHO

Trago as costas arqueadas pela força do chicote
e o risco da navalha desenhado em meu rosto.
Trago flechas encravadas espalhadas pelo corpo
e as mãos ensangüentadas pela dor de tanto esforço.
Trago a lágrima chorada na plenitude dos meus ais
e no peito a certeza de chorar ainda mais.
Trago a pele já curtida por caminhos, invernadas
e o demônio aprisionado, companheiro de jornada.
Trago o santo e o obsceno em batalhas desmedidas
e a sanha desta vida por atalhos, despedidas.
Trago a escolha de um rumo, conseqüências, incertezas
e perda eminente por ter sido incoerente.
Trago lábios encharcados de sorrisos e ternuras
e nos versos o veneno, a inquietude e a loucura.
Sou poeta, sou cigano, eremita, vagabundo,
coisa incerta e descoberta pelas trilhas deste mundo.
Ventania, correnteza, mar bravio, aspereza,
água pura e aguardente, sangue frio e sangue quente.
Sou deserto, sou oásis, sou procura, sou viagem,
sou espinho que arranha, sou verdade, sou miragem.


RAÍZES



NALDOVELHO

No espelho, a cor da minha pele. Lembro Vó Teresa, preta velha quimbandeira, sabedora de ervas e quebrantos, feiticeira quê, numa reza, já faz tempo, desencravou-me das entranhas de Dona Helena assustada, que chorava feito chuva, pela dor que sentia com o filho que teimava em não brotar. Naquele dia, por conta da velha parteira, houve promessa de entrega às águas do mar. Rosas brancas que na sétima onda que viesse serviriam para abençoar. Salve, Iemanjá!

Olho, mais detidamente, e percebo cabelos lisos, hoje tão embranquecidos, e lembro do Velho Lucas que em sua última passagem entre nós, morreu de dor de chicote, num tronco impregnado de sangue, a mando de uma sinhazinha, que ofendida pela recusa do negro em acoitá-la em seus desejos, acusou-o de ter tido a audácia de abusar de uma negra criada, que ao confirmar-lhe o intento, disse-o capaz de feitiços que ninguém seria capaz de imaginar. Salve, Xangô!

Vou até a janela e percebo a chuva, o cheiro de terra molhada e de erva espremida, essência de alfazema curtida, água de cheiro a banhar o corpo da cabocla, mestiça de negro mateiro e índia formosa... O nome dela: Iracema. Princesa que banhada nas águas de um rio, ungiu de dor as correntes por um amor que pariu mil e tantos guerreiros, caboclos que até hoje campeiam pela glória de Iansã e Ogum. Salve as matas que amo! Sua benção Oxossi e Oxum!

Fecho os olhos, adormeço e um velho peregrino me abençoa. Seu corpo coberto de chagas, seu olhar a transmitir pureza, filho de Nanã que Iemanjá criou. Sua benção, Pai Omulú! Que os cães vigiem os caminhos, e protejam as passagens que eu temo, e que um dia vou ter que trilhar.

Raízes negras, som de atabaques cantigas, pontos firmados em escuras senzalas, muitas demandas e ainda hoje nos olhos as marcas doídas do banzo, coisa difícil de explicar.

Preto Velho, sua benção! Fazei do inimigo um amigo e protegei-nos da tocaia dos que não se reconhecem iguais. Diz da alma marcada por correntes, das costas doídas pelos açoites desta vida e de outras, cicatrizes que persistem, e que vez por outra latejam doentes. Diz que apesar dos caminhos e de sermos filhos paridos de diferentes sementes, assim o fomos sob a inspiração de Oxalá.


OBSCENIDADES



NALDOVELHO

Obscenas são as lágrimas que se contêm reprimidas, num compartimento, espremidas, e que se recusam ao pranto por constrangimento ou vergonha e que a cada instante se entranham, cristalizados os desencantos que a vida não conseguiu dissolver.

Obsceno é o sentimento abortado pelo medo de novas feridas, posto que as que ainda persistem, sangram não cicatrizadas e volta e meia insistem em doer.

Obsceno é manter as janelas fechadas e impedir que a madrugada possa ao trazer novos dias, renovar no peito a crença num novo amanhecer.

Obscenas são as chaves que não abrem mais portas, e ainda dizer, pouco importa! Pois não se tem para onde ir.

Obsceno e recusar-se ao poema para não se expor o dilema que a vida ao criar obstáculos, ofertados em forma de escolhas, trouxe para o nosso viver. É não perceber que nenhuma escolha, não passa também de uma escolha, a de não se permitir o porvir.

Obsceno e negar o amor que ainda existe e transformá-lo em mágoa latente, triturada assim entre os dentes, até que brote dela o veneno que certamente irá nos destruir.

Que venham então as lágrimas e que sejam repletas, copiosas e escorregadias, para que possamos dissolver desencantos, sendo o bálsamo preciso a cicatrizar na alma as feridas e permitir que o sentimento brote sem constrangimentos.

Que sejamos então povoados de versos, muita poesia decerto, de preferência com janelas abertas e chaves que abram muitas portas, possibilidades e infinitas escolhas, ainda que sem garantias, pois ganhar ou perder são fases de um mesmo jogo, necessário para quem se dispõe a crescer.

VERSOS MALVADOS



NALDOVELHO

Malvado é um pistom em surdina num pranto dilacerado, madrugada chuvosa de inverno, num quarto de hotel junto ao cais. Louis Armstrong que o diga!

Malvada é uma flauta que brota inquieta, nostalgia que rola sem pressa, manhãs nubladas de julho, e a vida sufocada num embrulho, difícil de desmanchar.

Malvados são os acordes insanos de uma guitarra cigana sem planos, estradas, jornadas incertas, que teimosamente eu tento, lugar algum pra chegar.

Malvado é o espinho da rosa que sangra as mãos de quem colhe, manchadas as teclas do piano, sinfonia ardida de enganos, e que, ainda assim, eu teimo em tocar.

Malvado é o entardecer numa cidade estranha e deserta, e um vento frio me invade, e um cisco no olho disfarça a lágrima que teima em chorar.

Malvado é o apito de um trem, que diz até logo e um abraço. Quem foi, partiu pra bem longe, prometeu que voltava um dia, não sei por onde andará.

Malvado é o poema que eu choro, que diz da solidão que eu temo, em matizes sombrios que eu sonho, Michel Legrand ao piano... Tem coisas que, apesar dos anos, eu não consigo esquecer.


DOS SABERES



NALDOVELHO

Sei das estrelas que me encantam o caminho.
Sei do vento que acaricia o meu corpo
e que pacientemente esculpi em meu rosto
as marcas da solidão.
Sei do sussurro das águas de um rio
que insistentemente se põe a me dizer: saudade!
Sei da dor entranhada em meu peito
por amores deixados tristonhos.
Sei das escolhas e do desencanto,
sei das portas fechadas e do desabrigo,
das noites insones e do meu caminhar,
quase sempre, em desalinho.
Sei do exílio que hoje eu me imponho
e da inquietude que alimenta os meus sonhos.
Sei que um dia há de haver um repouso
e que ao verdadeiro amor não se impõe às amarras.
Sei da liberdade que teimosamente eu proponho,
sei da busca pela redenção.
Sei que sou apenas mais um peregrino,
que escolheu ser sem rumo, sem prumo e sem porto.
Sei que o meu nome tem gosto de ausência
e que o meu cheiro tem o odor da querência.
Sei que sou um anjo caído,
que ao olhar em seus olhos descobriu
que ainda era um menino
que não conseguia ser digno de você.

E POR FALAR EM VOCÊ



NALDOVELHO

Ruas, travessas, becos, esquinas,
sacadas, varandas, janelas entreabertas,
o tempo nublado, calçadas molhadas,
a chuva miúda, o cheiro de terra,
momentos de espera, estou tão sozinho,
o barulho dos carros apressados que passam,
o mês é setembro, quase primavera.

Andar sem sossego por toda a cidade,
tomar um conhaque, fumar um cigarro.
Melhor ir para a casa compor um poema,
dedilhar no piano um velho bolero,
sussurrar o seu nome, você está tão longe,
o telefone que toca, desculpe, é engano!
Continuo lhe amando, apesar dos enganos.

Comprei seu perfume e espalhei pelo quarto,
ainda sou um romântico, daqueles incorrigíveis
e o seu retrato ainda mora na cabeceira da cama.

Já são mais de dez horas nessa cidade nublada,
faz tanto tempo que a saudade é um tormento,
queria poder viajar pra bem longe,
queria poder me encontrar com você,
tentar refazer, acertar desta vez.

Os meus muitos defeitos: alguns consertei.
O livro de contos, ainda não terminei,
para ser bem sincero, a muito não pego,
já faz algum tempo, só escrevo poemas:
o mesmo tema de sempre...

E por falar em você...