NALDOVELHO

ESPAÇO DEDICADO A POESIA

quinta-feira, agosto 31, 2006

MINHA POESIA



NALDOVELHO

Minha poesia é fruto de sumo ardido,
e evidentemente consentido,
cultivado no desassossego
que habita as minhas entranhas.
Minha poesia é colhida em tardes vazias
e nos desencontros desta vida,
e é a forma mais estranha
que eu conheço de exorcizar meus ais.
Minha poesia é visceral e tamanha,
que ao ser parida me arranha,
revela segredos guardados
e restabelece no homem a paz.
Minha poesia é vinho tinto e rascante,
é do bagaço da uva, a aguardente,
é urgência, é inconstância, é demência.
Controvérsias que a vida nos traz.
Minha poesia é tatuagem doída e querida,
cicatriz que eu trago na mente,
é o que me diferencia pela vida,
é a benção herdada do Pai.
Minha poesia é água que jorra da fonte
e incessante, embriaga e alicia,
e por paixão, envenena e vicia;
é a coragem de querer sempre mais.
Minha poesia é lágrima chorada pra dentro,
e a palavra certa é nostalgia!
É lua cheia em noite sedenta,
é saudade que nunca se vai.

DOS DIZERES DESTA TAL DE BEATRIZ



NALDOVELHO

Dedicado à poeta Beatriz Escórcio Chacon

Poderosos, profusos, repletos, confessadamente dispostos em prosas, contos, poemas, que por vezes se mostram indispostos, impacientes e perversos a nos mostrar cicatrizes, versos livres de algemas. Por contas de quais escolhas vocês se atrevem a nos seduzir? Quantas “Beatrizes” vocês estilhaçaram e quantas chegaram vivas até aqui?

Só sei das bagagens verdades, por vivências, por muitas jornadas, do chicote trançado em seda, do fumo maduro e ardido, do vento que venta entranhas, visceral poética estranha que nos traz inquietudes tamanhas nos dizeres desta tal de Beatriz.

Mas que diabo! E eu que pensei ser poeta, prosador ou coisa assim, quanto ainda vou ter que me fragmentar para conseguir tecer versos assim? Quanta coragem será preciso para que eu possa obter a letra precisa que vá revelar a palavra contundente e gritada entre os dentes das verdades que eu trago comigo e que apenas revelam um poeta aprendiz do seu próprio porvir?

Ensina pra gente o poema! Ensina pra gente o caminho, ensina? Revela o segredo dos versos, livres, inquietos, confessos, dos dizeres desta tal de Beatriz.


quarta-feira, agosto 30, 2006

CRISES



NALDOVELHO

Caminho profuso, crises,
profundas seqüelas, passagens,
vestígios, sinais de mim mesmo,
testemunhos dos meus ais.

Feitiço conjurado na terra
só o vento pode desmanchar.
Feitiço forjado a fogo
só a água pode amenizar.

Sangue, suor e desgosto,
securas de lágrimas por dentro,
dor de constrangimento,
de culpa e destrambelhamento.

A teia que a aranha constrói,
aprisiona, sufoca, destrói.
Os cortes talhados na carne
só com o tempo vão cicatrizar.

O vinho derramado na mesa,
o pão mofado no armário,
toalha manchada de sangue,
nada que eu possa ofertar.

O terço que eu rezo faz tempo,
palavras que revelam poemas,
só aprofundam a dor que eu sinto,
nada que se possa curar.

Templos profanados, pecados,
escolhas, que eu faço, erradas...
E mais crises, cruzes e credos,
inquietudes que eu trago, sementes.

Teci por descuido um feitiço,
por nostalgias, lamentos, gasturas,
e hoje, por mais que eu queira e tente,
não consigo exorcizar.


NO FUNDO DO MEU QUINTAL



NALDOVELHO

Todos os dias ao entardecer,
no fundo do meu quintal,
de uma fonte de águas cristalinas,
nasce lua menina.
E nasce espremidinha,
lua nova pequenina,
e na medida que vai crescendo,
vai também se ascendendo,
até no céu poder se ver.
Ah! Lua que eu tenho,
que nem sabe o quanto
o poeta gosta de você.

E tem mais nascimentos na fonte:
outro dia nasceu uma Iara
de cabelos envolvidos em teias,
nebulosas, estrelas formosas,
olhos serenos em rosto pequeno,
parecia mais uma princesa
e roubou meu bem querer.
Ah! Iara que eu sonho,
que nem sabe o quanto dos meus versos
foram dedicados a você.

E é desta fonte de águas cristalinas
que eu extraio o remédio pro tédio,
pras dores dos desentranhamentos,
pros vazios e pros constrangimentos
que a danada desta vida costuma me ofertar.
Ah! Fonte que eu tenho,
que nem sabe quanta ternura
eu costumo colher em você.

terça-feira, agosto 29, 2006

NO ACONCHEGO DO TEU SER



NALDOVELHO

Quando o bico do teu seio atrevido sobre a camisa transpassa o tecido e aguça os meus sentidos, como manter o equilíbrio?

Como evitar o olhar diante da tua pele em chama? Como preservar a calma, se és fogo que incendeia e traz pra perto o perigo? E o que fica é só o desassossego!

Quando o outro bico, esse não tão atrevido, mais pra dissimulado, escondido na tocaia à espera do inimigo dá a perceber teu intento, como esconder o desejo diante de tão cálida imagem?

Se me olhas assim de soslaio e me mostras um carinho, um atalho, como conter os meus passos se tu me ofereces o abrigo?

Se é quente o colo que me espera, se é doce o veneno, a peçonha, como beber no teu corpo e não morrer de prazer?

Ah criatura estranha! Que respira tão perto e se assanha, que tece tuas teias de aranha, que escraviza e me faz renascer.

Ah! Se eu pudesse me despariria em ti por inteiro, só para viver protegido no aconchego do teu ser.

UMA TELA NUM QUADRO



NALDOVELHO

Imagens suaves ao traçar um esboço, na tela o teu sorriso vai tomando forma e gosto. Recriar o teu corpo em todos os contornos, não posso esquecer teu olhar, é o meu jeito de dizer o quanto eu te amo, te quero e preciso.

Diferentes matizes e ainda um pálido esforço. Retratar-te é o meu vício, não consigo parar! Eu olho para o espelho e vejo o meu rosto, já não tenho vinte anos, quantas marcas, quantos enganos...

Vou até a janela e lá fora é novembro. Imagino-te tão bela, miragem, oásis, e ao acreditar em magia, materializo-te em meu quarto. Na tela eu já percebo um carinho absurdo, uma espera inquietante e uma saudade singela como plano de fundo.

O cigarro entre os dedos, só falta um conhaque. Conhaque eu não posso, fumar também não, só não consigo parar! Talvez se deste quadro tu saltasses da tela e me desse abrigo, fizesse-me querido e de fundamental existência, talvez então o tempo parasse de passar e arrependido pelos estragos deixasse voltar ao presente o nosso passado... E quem sabe uma nova chance?

Tua imagem na tela já se faz quase pronta, alguns poucos detalhes, delicados momentos, pouca coisa nos falta para que concretizado possamos ficar nos olhando: eu aqui, só, neste quarto, preso a este nostálgico quadro, junto com minhas lembranças, tuas lembranças, minha espera e a esperança de reviver este amor.

A CASA DAS COISAS



NALDOVELHO

A casa das coisas guarda coisas preciosas, pequenos cristais reluzentes, sentimentos materializados, tirados de dentro da gente. Guarda também com cuidado o coração de um poeta que pulsa assim afrontado, batendo descompassado por tanto amor que ele sente. Guarda lembranças sagradas, imagens eternizadas, palavras, versos, poemas... Guarda também meus segredos, testemunhos das minhas escolhas, registro dos meus dilemas.

A casa das coisas guarda coisas sagradas: guarda o gosto do último beijo e o cheiro do teu desejo, coisas que eu não esqueço; guarda a lágrima cristalizada que abortada não foi chorada e que até hoje incomoda e arde, encravada, tipo farpa espetada no canto do meu olho esquerdo.

A casa das coisas não tem trincos, não tem fechaduras, nem tramelas, e é lá que mora o meu sonho.

E na parede do quarto está escrito o teu nome e este é mais um guardado precioso e sagrado que a ninguém podemos revelar.

sábado, agosto 26, 2006

SINA DE POETA



NALDOVELHO

Queres boas notícias? Como? Se também não as têm. Além do quê, é ofício do poeta transformar em beleza aquilo que é feio, dissolvendo coisas cristalizadas, desatando em nós os nós. É ofício sagrado materializar energias, emoções, falar da dor e do abandono, da saudade que se tem, da nostalgia que nunca se acaba, e de tudo aquilo que não faz bem.

Pois então minha amiga! Vamos pregar a Paz, mostrando a guerra e o quanto ela pode ser cruel? Vamos disseminar o amor, lamentando o desamor e o vazio que fica? Eu rogo pela presença chorando a ausência, pois tu sabes, o quanto, um dia, seremos capazes de amar.

É sina do poeta, crescer pela inquietude, desafiar a maldição do tempo, sendo eternos enquanto poema, e infinitos em nossas sementes. É missão do poeta ser água que jorra da fonte, que prossegue irrigando em vertentes, e inunda toda esta terra. É nosso fardo e feitiço dizer da amargura que se carrega, por tanta, e tamanha, loucura, pois Deus assim nos fez, e o que Ele nos pede? Crescer como arautos que somos dos conflitos que nunca se acabam, do desgaste que tanto consome, e da ironia da lapidação, transformando-nos de pedra bruta, em puro cristal, evolução! Esteja certa! O nosso acesso se faz entre os ais!

As boas notícias: é que continuamos na estrada, é que fomos escolhidos, é que somos fortes, é que a capacidade de transferir para nós o sofrimento do mundo é inesgotável, é que através do nosso pranto semeia-se no homem a capacidade de reflexão e de compreensão das coisas.

Num mundo perfeito não existirão poemas e todos seremos poetas. Num mundo perfeito seremos poesia, e o mais lindo dos enredos não será expresso em palavras, será um estado pleno de amor à Criação.

VERSOS PERPLEXOS



NALDOVELHO

Imagens confusas, contorcidas, difusas,

cores contundentes, alucinantes, deprimentes.
O cheiro de pólvora agride e incomoda.

Constrangedora é a dor que inunda a nossa mente.
Palavras distorcidas, descabidas, incoerentes;
versos complexos, sombrios, perplexos;
rimas sofridas e inconseqüentes.
Quem foi que disse que a dor do próximo
não dói lá dentro da gente?

Histórias já vividas, lembranças, memórias.

O canto de guerra fere os ouvidos,
hora de trincar os dentes,
de cerrar nervosamente os punhos,
já não cabem mais poemas que falem
da dor que se sente por aquele que se fez ausente.
Quem foi que disse que a dor do próximo
não dói lá dentro da gente?

Dor de perda e lamento,

dor que vai nos trazer arrependimento
por tantas e infelizes escolhas,
por tantas feridas abertas,
por tantas portas trancadas,
ou então, violentamente arrombadas
e pelo sangue que a terra hoje chora.
Quem foi que disse que a dor do próximo
não dói lá dentro da gente?

Dor de lágrima incontida,

dor de semente pisada e violentamente extirpada,
dor de um coração que implora a Deus pelos seus filhos,
dor que desconhece a glória, dor de inóspitas horas.
Quem foi que disse que a dor do próximo
não dói lá dentro da gente?

VIAGEM



NALDOVELHO

Raros poemas se insurgem dispersos, insistem em conjugar o verbo em versos, num tempo presente de cores ausentes, gasturas que a vida deixou pra nós dois.

Raros poemas ainda brotam feridos, paridos urgentes, extraídos do umbigo, revelam a dor que o poeta hoje sente, por tantas escolhas, feridas latentes, estilhaços cravados, caminhos errados, desgovernados os rumos por falta de aprumo e o verbo ainda teima em ser conjugado.

Raras sementes germinam coragem, sobrevive o sonho, rebelado, em meu peito, vida que segue, prossigo em viagem por esperas, quimeras, imagens, bobagens, ilusões de um tolo, sonhos, miragens.

Adormeci, criança, ao som de cantigas, acordei estiagem, madrugadas ardidas. Primavera de outubro, vento frio aqui dentro, inquietude evidente, nostalgia, tormento.

Janela da sala, vidraça embaçada e a porta de entrada permanece trancada. As horas, tão lentas, amanhecem sedentas, afogadas as rimas, embaralhados os versos, coração do poeta, já nem tenta, se ausenta.

Primavera que explode plena de encantos, aqui dentro é inverno, faz frio e chove, e o poeta cansado já não esconde seu pranto.

Raras sementes se insurgem dispersas espalham coragem, apesar do inverno, de um tempo presente de cores ausentes, gasturas que a vida cultivou pra nós dois.

Raros poemas ainda sagram feridos, extraídos urgentes de dentro do umbigo, revelam chegadas, partidas, enganos, abismos, atalhos, sentimentos estranhos.

Raras palavras demonstram carinho, resquícios de um tempo de delicadeza onde tudo era sempre uma prova de amor.

Muita inquietude entranhada em meu peito, sobrevive o verbo, rebelado o sonho, vida que segue sem pensar no depois.

Janelas e portas, fechaduras, tramelas, vidraça embaçada, visão distorcida, descompassos do tempo, desarranjos da vida, primavera de outubro, chuva fina de inverno, vento frio lá fora, desconforto aqui dentro, nostalgia das horas passadas faz tempo.

Um café, um cigarro, o dedilhar num piano, um poema escrito, o nome dele é engano. Coração do poeta não anda lá essas coisas, pelas vias de acesso, tantos restos, dejetos, pelas rotas de fuga muitas pedras, entulhos.
.
Lá fora amanhece, aqui dentro anoitece. O radio ligado traz notícias dos longes, das coisas que por aí acontecem... Só não sei de nós dois.

sexta-feira, agosto 25, 2006

TESTEMUNHA OCULAR



NALDOVELHO

Sobre o tapete do meu quarto um grupo imenso de letras passeia alegremente. Um outro grupo indolente, preguiçosamente sobre a cama, cochila impunemente. Mais outras tantas, no sofá, acomodadas, assistem à televisão à espera do noticiário. Sobre a estante, num vai e vem incessante, milhares delas tentam se organizar sobre uma folha de papel em branco. Buscam acasalar-se em sílabas na tentativa insana de formar palavras, verbos, frases, significados. Algumas mais românticas preferem construir versos, letras líricas e emocionadas, acreditam que possam unidas edificar um belo poema, uma mensagem de amor. Letras ousadas!

E enquanto isto em minha mente, notas insistentes ecoam, seres alados e impertinentes na pretensão de se unirem aos versos em harmonias explícitas, sensuais, viscerais, melodias sedentas que possam deixar marcas bem fundas dentro de cada um de nós.

Só falta então abrir a janela e deixar a danada da inspiração entrar e dar sentido a toda esta orgia. E acreditem! Não há nada que eu possa fazer a respeito: sou só uma testemunha ocular.

quinta-feira, agosto 24, 2006

FIOS



NALDOVELHO

Fios em desalinho embaraçam a trama,
arranham, deformam e até infeccionam.
Fios dependurados em sobras complexas,
reinventam o pecado, se excedem nos dramas.
Fios compactados, num só ponto, amontoados,
transformam o tecido em pedra e dão limo.
Fios puídos enfraquecem o tecido,
distorcidas imagens, revelam estragos.
Fios, tecidos, esparramados pra todo o lado.
Pessoas são fios embaraçados na trama.
Texturas são dramas que buscam um caminho,
dissolvendo as pedras, limpando o limo.
Fios contorcidos entulham o ambiente,
impedem o bordado, não servem, coitados!
Melhor desembaraçar as linhas, destinos,
textura e tecido precisam respirar.



EXTRAÍDOS DO UMBIGO



NALDOVELHO

Trago versos retorcidos extraídos do umbigo,
coisas tantas dissolvidas, tudo em forma de poema,
tudo exposto na loucura, madrugadas de insônia
por atalhos percorridos, pelas dobras de um tempo
de imagens distorcidas, por esperas, desenganos,
frutas tenras, muito trigo, marcas feitas, muitas vidas
na colheita das sementes, cicatrizes, tatuagens,
existências, conseqüências, tudo em busca do meu eu.

Trago a crença no caminho, águas claras, corredeiras,
cordilheiras, noite adentro pela beira do abismo,
trago o grito reprimido de um passado ainda vivo
e a revolta ainda sangra, coração descompassado,
e as mãos ainda clamam por batalhas, descobertas,
muita dor ainda implora, quantas farpas espetadas?
Muito sonho, muitas lágrimas em cantigas que eu entôo,
melodias que eu proponho, tudo em busca do meu eu.

Trago os dedos calejados e os pés dilacerados,
algumas prendas, coisa pouca, e em minha mala pouca roupa,
um litro cheio de aguardente, ainda tenho o sangue quente,
alguma erva pra consumo, vez em quando perco o rumo,
um amor que anda latente, por escolha, tão distante,
mas deixou delicadeza e saudade sobre a mesa,
vez por outra ainda choro resmungando o seu nome.

Sou poeta, não tem jeito, vivo em busca do meu eu.

É TEMPO



NALDOVELHO

É tempo de caminhar em silêncio, o sol entardece lá fora, primavera ardida de outubro, logo-logo anoitece, e a lua vem nos abençoar.

É tempo de fazer uma prece, para todos os estranhos deuses que habitam nossas entranhas. Cada um de nós tem o seu! Alguns, até, mais de um!

É tempo de dizer te amo! E que apesar de todos os enganos, melhor não poderíamos fazer. Até por que não saberíamos, ainda há, muito, o que aprender.

É tempo de beijar nossos filhos e pedir perdão pelos desatinos, pelas heranças amargas e insanas, semente de erva daninha que erramos ao cultivar.

É tempo de abrir portas, janelas, porteiras, cancelas; romper fronteiras distantes, acabar de vez com as esperas... Não tarda alguém vai chegar!

É tempo de abraçar os amigos, dizer do aconchego preciso, olhos nos olhos sem mascaras, tocar o coração do inimigo, semear compreensão.

É tempo de brindar nossas vidas, de curar em nós as feridas, de enxugar de vez todo o pranto, pois apesar de toda a loucura, agora é hora de consertar.

É tempo de tomar o trem! Amanhã, antes do anoitecer, quando o sino tocar seis vezes, aonde quer que estejamos, estaremos pensando em vocês.

É tempo de dizer adeus! Faz de conta que fomos melhores, pois não foi tão grande o estrago.Quem sabe uma nova chance? Custa nada acreditar!

MEU DEUS



NALDOVELHO

Meu Deus é fruto do desgaste da existência através dos tempos. É cristal lapidado pela ação dos ventos, é evolução!

Meu Deus foi forjado no atrito entre a rocha e o mar. É vida que brota, sempre, renovada, cristalina na nascente, e é sol emergindo das águas anunciando um novo dia.

Meu Deus é amor, é mulher, é seda macia, é veneno que mata e ao mesmo tempo recria, é mãe que em seu colo aquece e faz do fruto a semente, é fogo que queima as entranhas e transforma o culpado em criança inocente.

Meu Deus é ventania, é chuva forte, é também calmaria, é cheiro de terra molhada, é cio sagrado da terra, é música que jorra suave, é alquimia. É procura, é labirinto, é miragem, é desencontro, é solidão, é dor de partida, que muitas vezes se faz sem despedida, é saudade do ser amado, é navegar sempre atento, com muito cuidado.

Meu Deus são crianças brincando no parque, são os bichos soltos pelas florestas, é o entardecer e o sol adormecendo em meu quintal.

Meu Deus é noite de lua, é acalanto, é poesia, é o orvalho da noite molhando a cidade, é madrugada de outono, é despertar ao teu lado.

Meu Deus se renova, todos os dias, é imensa esperança, é construção, é também a derrota que tanto ensina, é começar de novo, é não desistir.

Meu Deus é semente, é fruto, é pedaço de pão, é abraço apertado, é carinho ofertado, é aperto de mão, é água da fonte, é água do rio, é água do mar, é nuvem cinzenta, é água da chuva, é transformação.

Meu Deus é envelhecer ao teu lado. Meu Deus é a redenção do pecado, é crescer como ser e atingir a compreensão.

COLHEITA DE VERSOS



NALDOVELHO

Colheita de versos, esparramados, dispersos. Ordená-los sem pressa, de preferência num livro, que é o melhor abrigo pros açodamentos do tempo, pois é lá que existe o remédio, a cura pro tédio, e a magia que propicia ao solitário a viagem por terras, amores, países estranhos, esquinas, romances, por colos, donzelas, por portas, janelas, todas elas sem trancas, sem trincos ou tramelas.

Colheita de versos, paridos nostálgicos, profanos, bastardos, controversas escolhas que embora ainda doam, mostram sentimento, revelam as vivências que o poeta decidiu para si.

Colheitas de versos, rimados ou não, metrificados, às vezes, não importam as regras, o que me importa a erudição? Algemas que impedem que o dito seja dito sem nenhum constrangimento, pois é a palavra que nos revela todo o encantamento que precisamos viver.

Colheita de versos que eu proponho confessos, revelam segredos, exorcizam meus medos, cicatrizam feridas, tiram de mim a casca que eu precisei construir para sobreviver.

Colheita de versos, que bom que eu os tenho! Ainda que safados, indecentes, indigentes e ejaculados sem pressa vão fertilizando as folhas... Quem sabe algum dia alguém possa colher?


BACANAIS "DI VERSOS"



NALDOVELHO

E é um tal de tropeçar em palavras expostas desordenadas por todos os cantos da casa, e toda a vez que tento disciplinadamente organizá-las, elas teimosamente frustram o meu intento e sentido, e assim sendo insistem em permanecer destrambelhadas a atormentar o poeta que desesperado implora que cessem de uma vez com a orgia que a inspiração que eu temo semeou por aqui.

E o pior é que algumas delas, promíscuas e obscenas, em bacanais “di versos” acasalam-se compulsivas, às sonoridades profanas e desavergonhadamente assumidas das miscigenações desta vida e acabam por gerar melodias que dissonantes e estranhas tentam seduzir o poeta a aderir à anarquia que a inquietude que eu sinto disseminou por aqui.

Ainda bem que existem as telas, paisagens de monocromáticos matizes, e mesmo que gélidas e inóspitas, concedem-me o asilo preciso, na solidão que eu cultivo e que harmoniza o poeta, permitindo, então, que eu possa prosseguir.

ACONTEÇA O QUE ACONTECER



NALDOVELHO

Têm dias que a poesia amanhece cansada, fastios de desentranhamentos, escassos os versos que eu tento, dias nublados demais! Onde só resta o silêncio e a quietude da alma, pois nem o vento abusado se atreve a invadir-me o quarto, ainda que aberta a janela. Dias de calmaria, coisa incomum nestes tempos de tantos açodamentos.

Têm dias que eu amanheço distante, a trilhar caminhos ausentes, a sonhar vazios presentes, por esperas intermitentes, pois nem sempre eu te vejo ao meu lado, posto que, quando eu te procuro, já não estás mais. E aí é um tal de choro não choro, não sei se vou ou te espero, e o que eu percebo é sempre nublado, embaralhados os pensamentos, que até os versos que eu tenho, confusos e destrambelhados, não transmitem o sentimento, nem o estrago que tudo isto me faz.

Têm dias que eu amanheço tormenta, de poesia inquieta e ardida que por quase nada arrebenta as comportas e deságuam lágrimas densas, que, por tanto tempo reprimidas, espalham poemas, cantigas a dissolver cristalizadas feridas e curar a dor que atormenta.

Têm dias que eu amanheço magia, de pássaros barulhentos, de flores em animada conversa, de sol que exibido se apressa em mostrar as belezas da vida. São dias de sorriso nos olhos, de buscas e esperanças confessas, por saber que por mais que a tormenta me escolha, o poeta sobrevive inteiro no sagrado ofício que eu tenho de ser poesia em festa, aconteça o que acontecer.



quarta-feira, agosto 23, 2006

A CHAVE DA CASA



NALDOVELHO

O relógio, os ponteiros, o tic-tac nervoso,
a garrafa de conhaque pra baixo da metade.
A campainha da porta adormecida, em silêncio,
a janela da sala permanece entreaberta.
O cinzeiro lotado, o cigarro entre os dedos,
respiração afrontada, o poema, o segredo.
O ambiente em penumbra, o mês é setembro,
madrugada chuvosa, faz tempo, nem lembro,
da última vez que ouvi o seu nome.
O livro de poemas, finalmente terminei,
poucos foram vendidos, a maioria eu guardei.
Na estante da sala uma bagunça danada,
livros, corujas, cristais e cds.
Tem tempo não ando pelas ruas da cidade,
enlouquecem-me o barulho e a fumaça dos carros.
O açúcar anda alto, o nome certo é glicose,
o telefone às vezes toca, normalmente é engano.
No canto da sala um quadro inacabado,
monocromático esforço, um árido esboço.
O vaso de plantas, quando lembro, eu rego,
samambaia valente resiste a tudo.
O violão em silêncio, desafinadas as cordas,
não componho mais toadas, estou mais pro bolero,
as teclas do piano traduzem melhor os enganos.
Notícias recentes dão conta que o sonho
ficou a deriva num navio sem cais.
Ainda guardo em meu quarto a aliança, o perfume,
sua fotografia e as cartas de amor.
A chave da casa, escondida, você sabe...
Quando quiser, é só abrir a porta e entrar.

DEDICADO A VOCÊ



NALDOVELHO

Pernas e braços me aprisionam, são laços.
Abraços tão cálidos, tão ternos, tão fartos.
As falhas, as fendas, as marcas, as sardas,
escalar a montanha em busca de abrigo,
as farpas, escarpas, precipícios, perigos,
a sede e o fogo, nascente de um rio.
Se eu mergulho me afogo, me acabo em seu cio.
As folhas, as flores, afiados espinhos,
o sonho e a seiva, alimentar o menino,
cicatrizar os seus cortes, curar as feridas.
Seus olhos bordados, tão verdes, felinos,
a forja de um homem se fez em seu colo.
Faca afiada sangra o chão do seu quarto,
o sangue que escorre, se esvai em silêncio,
a lágrima que eu choro, saudades que eu tenho,
a forja de um homem se fez pela dor.
Não feche a janela, deixe a porta entreaberta,
permita que eu fique silencioso ao seu lado.
Sua pele macia, seus seios, seu ventre,
seu cheiro é veneno que embriaga e vicia.
Seu beijo molhado, suas coxas tão quentes,
a forja de um homem se fez no prazer.
De estar protegido, de estar sossegado,
de ter o carinho aconchegado em seu colo,
de ter a beleza preservada neste templo,
corações apaixonados, solo consagrado
ao amor que eu sinto por quem hoje eu tenho.
Este é mais um poema dedicado a você.



PRA VOCÊ



NALDOVELHO

Passos, carências, desvios, caminhos,
estreitos atalhos, ribanceiras, espinhos,
pequenas feridas, ardências, fogueiras,
tropecei numa pedra, loucuras, besteiras,
fiquei tão sozinho, busquei o seu colo,
morder os seus lábios, escrever um adágio,
sugar o seu seio, chegar ao orgasmo,
seus cabelos são teias, seus pelos, amarras,
seus olhos revelam, segredos, palavras,
clareiras, carinhos, reescrever o meu destino.
Se eu dormir não me acorde, respeite o cansaço,
quem sabe eu acorde ainda em seus braços?
Quem sabe a água que jorra da fonte,
lave a sujeira em meu corpo entranhada
e eu possa ser digno de estar com você?
Seus passos, seus gestos, já estou acordado,
enorme fogueira ilumina a estrada,
sinais, descobertas, aconchegos, pousadas,
suas mãos em meu corpo, feridas curadas,
arar o terreno, fecundar a semente,
valeu a espera, sagrado é o seu ventre.
Este poema de amor eu escrevi pra você.

TARDE DE DOMINGO



NALDOVELHO

Dúzia e meia de rosas brancas, jarra de vidro, em cima da mesa, sala de jantar. Na estante, junto com os livros, centena e meia de corujas e uma infinidade de pedras: ametista, água-marinha e quartzo... Muitos quartzos.

Um canário belga em sua gaiola a tudo observa e aprova. Na gaiola do lado um canário da terra capricha num solo. Num viveiro, dois outros pássaros: um manon e um mandarim, estranhamente apaixonados, constroem um ninho.

Na sala ao lado: biblioteca, um aquário com mais de três dezenas de peixes, e numa outra estante, anjos, muitos anjos!

Na sala de estar, entrada da casa, duas poltronas confortáveis e três quadros na parede: paisagens áridas e monocromáticas. Numa cômoda, parede dos fundos, uma Bíblia aberta e muitos retratos.

Em todos os cômodos, janelas amplas e abertas. Muita luminosidade ambiente.

Lá fora: domingo, janeiro, tarde nublada. Aqui dentro: silêncio, harmonia, preguiça gostosa e poesia.

Algumas poucas rolinhas desafiam o tempo e perambulam pela sala em busca de alimento.

Quase três horas da tarde, olho para poltrona e percebo: você adormeceu lendo o jornal.Vou até a cozinha, passo um café fresco e o cheiro vai até você. Volto a tempo de ver seu sorriso...

- Acabei cochilando! Café fresquinho, que bom!


terça-feira, agosto 22, 2006

DA JANELA DO MEU QUARTO



NALDOVELHO

Da janela do meu quarto eu vejo muitas coisas. Vejo na madrugada o sol surgindo a descortinar um novo dia, às vezes mal humorado, por conta de um verão que arde feito um forno danado de quente e que sem mais nem menos cozinha a paciência da gente; outras bem humorado, manhãs tão belas, de primavera, outono ou inverno, suaves e tão plenas de luz. Manhãs de chuva não, nem de tempo nublado, pois costumo dormir até tarde abraçado às minhas cobertas, embriagado pelo cheiro que a terra molhada exala, e por conta da preguiça nada vejo.

Da janela do meu quarto eu vejo as pessoas em busca de suas vidas, a semear com o suor dos seus corpos, a colher seus frutos passados, aprendendo com o certo e o errado, tentando construir um amanhã. Vejo o chefe de família, cansado, mal dormido, semblante um tanto preocupado, pelos compromissos da vida, quantas dívidas não pagas, tempos difíceis de se viver... Tem sempre alguém querendo cobrar!

Vejo o homem bem humorado, por conta do sucesso, satisfeito por ter realizado algum plano de vida; vejo um casal de jovens, enamorados, quantos sonhos a serem concretizados, numa mistura de paixão e esperança... Espero que a vida se mostre generosa, poupando-os dos desencontros e fracassos, tão comuns nestes nossos dias. Tomara Deus que o encanto, nunca se permita à amargura e mesmo que haja a partida que esta deixe poucas feridas. A vida ensina como cicatrizar os cortes.

Da janela do meu quarto vejo um casal, já descasado, divergindo sobre o quanto, em litígio sobre as posses. Quanto ódio em seus olhos e as crianças tão precoces, objetos de partilha, quanta mágoa em seus semblantes, não conseguem entender.

Vejo também e ainda bem, o casal bem resolvido, de muitos anos vividos em perfeita comunhão, cabelos brancos, já idosos, num sereno aconchego, próprio daqueles que souberam conciliar, que souberam compreender que o desgaste foi feito apenas para nos lapidar.

Da janela do meu quarto eu vejo muitas coisas: o ambulante, o traficante, o mendigo, o desempregado, o viciado, o pivete, a prostituta, o bêbado, o louco varrido; toda uma legião de excluídos, tentando sobreviver por conta de um drama que nós mesmos ajudamos a escrever. Vejo a cada instante um assalto, um grito, muitos tiros, o conflito; vejo a favela e as nossas mazelas, nossas fraquezas, delitos... Tantas coisas deveríamos ter feito e a forte impressão de que não há nada a se fazer. É como se fosse um filme... Acho que já é hora de entendermos, filmaram a vida da gente e não deu nem para perceber.

Da janela do meu quarto eu vejo a tarde chegando, brisa suave e tranqüila a arejar nossas mentes, e as pessoas continuam passando em busca de um amanhã.

Vejo a nuvem cinzenta, estranha, os cachorros uivando, assustados, vejo a lágrima escorrendo, abundante, dor de partida de um ente querido... Acho que a morte seqüestrou mais alguém!

Anoitece, o sol se esconde, as luzes se acendem e a lua, de repente, reclama toda a atenção para si. Um café reanima, acendo um cigarro, contado, racionado, e me vejo também na calçada a buscar alguma coisa perdida, pois lá se vão cinqüenta e poucos anos de vida e eu nem sei se ela foi bem vivida, ou se ela passou e eu não vi!

Da janela do meu quarto eu vejo muitas coisas. Vejo o casal de amantes, sorrateiros, audaciosos, protegidos pela lua, alcoviteira das mais famosas, cada um preso ao seu laço, não conseguem se desvencilhar, não conseguem se despedir.

Vejo a mulher solitária abraçada à sua saudade, televisão ligada, não importa em qual programa, é só para assustar o silêncio, é só para amansar o tempo, enquanto o sono não chega, alguns comprimidos e dormir.

Vejo o escritor delirando, a viajar em algum novo tema, tomara que seja um romance... Drama não! Já chegam os que existem por aqui. Quem sabe um belo poema que fale de pele morena, de aconchego, de coisas molhadas, que acabe em beijo na boca e de preferência com nenhuma roupa. De corpos nus é bem melhor!

Da janela do meu quarto eu percebo que a noite avança, alguém me pede uma dança e o som de uma música suave brota da janela ao lado, onde um piano, com muito capricho, descola um “blues”, quase um clássico. Olho e te reconheço, companheira de tantas noitadas, a quem eu chamo de anjo travesso. O teu nome é insônia insistente que faz tempo está sempre presente tentando me seduzir.

Da janela do meu quarto eu percebo a cidade em silêncio, vento frio, já é madrugada, daqui a pouco amanhece e pronto! Céu de chuva, mudança de tempo, logo mais acordar, bem mais tarde, pois o poeta precisa dormir.



EPÍLOGO


NALDOVELHO

Palavras, escolhas, fronteiras, delírios,
atalhos, lembranças, clareiras, abrigos,
esperas, romances, distâncias, desvios.

Tomei uma balsa, lado errado do rio,
naveguei, naufraguei, me afoguei no passado,
fiz de um dia nublado o meu manto sagrado,
fiz do amor que eu sinto um precioso guardado,
renasci no teu colo, jugular nos teus dentes,
pra curar as feridas, só com muita aguardente,
pra curar minha dor, melhor morrer de repente.

Mas morrer bem depressa, apagar minha mente,
só assim o teu cheiro se perderá em segredo,
só assim o meu medo se dissipará no desejo
de recomeçar outra trilha, outra busca inquietante,
de construir outra vida, de preferência inocente,
pois por ser hoje um homem que se fez tão descrente,
já não crê na magia de que o amor é capaz,
já não se apraz com seus versos, amargos demais!

Por não viver no presente a harmonia e a paz,
por não ter sido forte para desconstruir o passado,
agora, não tem mais jeito, é tarde demais!
Melhor calar e chorar para lavar o meu rosto,
quem sabe assim eu desmancho o desgosto,
pois vivi como um tolo, um poeta, um louco,
e fiz da vida um imenso confronto...

Derrotei a mim mesmo e não consegui triunfar.

segunda-feira, agosto 21, 2006

NA MISERICÓRDIA DO PAI



NALDOVELHO

De que adianta cercear-me o caminho,
se o meu andar é em desalinho
e por conta de tantos desatinos,
sou mestre em abrir atalhos?

De que adianta cegar-me os olhos,
se ainda assim eu percebo o inimigo,
a tocaia, o perigo, o abismo
e todas as armadilhas da estrada?

De que adianta encher-me de chagas,
se ainda assim eu prossigo
a erguer com minhas mãos um abrigo
e a colher desta terra a semente?

De que adianta abrasar-me nas chamas,
se ainda assim meu coração permanece
e o amor que eu tenho prevalece
sobre todo e qualquer drama?

De que adianta ceifar-me os versos,
se ainda assim eu te proponho o alimento,
o aconchego e o remédio
que irá libertar-nos os sonhos?

De que adianta conduzir-me à morte,
se ainda assim a existência persiste
e imortal é o espírito que insiste
na crença do Criador.

Nada que faças me comove,
nada que tentes me demove,
pois sou eterno nos caminhos que eu tento
e cada vez mais forte na misericórdia do Pai.

FACA AFIADA



NALDOVELHO

Novela das sete, novela das oito,
faca afiada abre um sulco no rosto
da cidade sitiada por omissões e desgostos
e lhe expõe as entranhas de forma estranha,
revelando a vergonha que reside em nós.
Revela o pivete, o sinal, a gilete
que na palma da mão agride a quem passa
e a lata de cola cheirando à esmola,
excremento infame de quem nada oferece.
Revela o lodo, alguns pensam que é sangue,
a correr pelas veias, valas negras, sarjetas.
Revela o engodo a camuflar todo o nojo,
realidade maquiada, novela das sete.
Revela o ardil, o Ar-15, o fuzil
e a bala perdida, mais um que partiu.
Revela os ritos, tribais, primitivos,
irmandades forjadas a ferro e fogo, feridas,
comandos encarcerados a governar nossas vidas.
Revela a incoerência de que consome e mente,
faz questão de vestir o branco da paz,
mas depende de um branco pra fazer o que faz.
Revela a cicatriz talhada em concreto...
Linha Vermelha e Amarela, acessos diretos
a transformar as pessoas em meros objetos,
sombras apressadas e pelo medo acovardadas.
Revela um padroeiro que morreu prisioneiro
e que até hoje agoniza caçador de si mesmo.
Faca afiada abre um sulco na carne,
dilacera as entranhas e expõe toda a sanha
dos que acreditam que o povo é um mero estorvo,
que a justiça é um entrave e o traficante um detalhe,
e que apesar disso tudo, há sempre um lucro eminente,
ainda que ao custo de dores urgentes
paridas no ventre de tanta gente inocente,
anestesiados que estão, novela das oito,
se desligarem a televisão, morrem de inanição.

domingo, agosto 20, 2006

MANIA DE COLECIONADOR



NALDOVELHO

Coleciono pétalas diversas, espinhos, pedaços de quartzo, alguns lapidados, muitas corujas na estante da sala, livros queridos, leituras freqüentes, inquietudes da alma, algumas urgentes, pedras redondinhas de beira de rio, fios coloridos todos em desalinho, folhas secas de outono cheirando a abandono, romances, partidas, saudades latentes, tocos de vela, aflições de uma vida, algumas restam acesas dentro do peito, aquecem o inverno dos meus sentimentos, algumas intocadas, precauções que eu tenho, sei lá do futuro e dos rumos que eu tomo.

Coleciono gravatas penduradas no armário, documentos, histórias, tudo catalogado, retratos antigos, imagens, passado, telas, meus quadros, estranhos, profusos, uma infinidade de versos, rabiscos confusos, alguns aproveito, cometo poemas, se mexo e remexo resultam em prosa, palavras que eu tenho, sagradas memórias.

Coleciono mulheres, amores tão densos, mas teve aquela que colheu e guardou, sementes de trigo e águas de um rio e na troca de odores, suores, salivas, plantou sutilezas, colheu meu amor.

Coleciono abraços, sorrisos, amigos, alguns bem distantes permanecem queridos, alguns ao meu lado servem de abrigo.

Coleciono invernos, primaveras e outonos, notícias dos longes, esperas, certezas, que sempre ecoam a cada passo sofrido, em cantigas, toadas, melodias profanas, discos antigos, jazz e blues, também tem boleros, a maioria cubanos, tem Águas de Março, Elis e Jobim, tem Nana Caymmi, tem Milton e tem Chico, ultimamente alguns choros doídos, confesso!

Sonoridades, palavras, imagens, objetos, ainda bem que eu os tenho bem junto a mim.

LÁGRIMA INCONVENIENTE



NALDOVELHO

Palavras amordaçadas, sufocadas, soterradas; poemas insurretos, só sobrevivem nos sonhos. A emoção que se esconde sorrateira entre os dentes, lágrimas indigentes, represadas, latentes.

Não posso confessar que te amo! Não devo declarar que te quero! Não quero mais a dor de um quem sabe? Pois o meu sangue hoje se arrasta por vias estreitas, congestionadas, e pelos capilares já nem passam! Por força de tantos atritos, conflitos, detritos... Se eu insistir: enfarto!

Melhor colar em meus lábios um sorriso, um que seja bastante convincente, mas não a ponto de ser contundente, senão pode soar falso aos descrentes que vivem a buscar um sinal de fraqueza que possa me denunciar. Deixe que permaneçam desatentos, não devo demonstrar meu desalento, não posso mais dar asas à incerteza, ainda que a tua imagem assombre os meus mais íntimos desejos, pois na cabeceira da minha cama permanece o teu retrato.

Continuo um romântico, só que não mais um confesso, pois o amor que eu ainda professo, a ninguém posso revelar.

Enquanto isso, qualquer lágrima será vadia, indigente e inconveniente, de preferência chorada no chuveiro que é para ninguém notar.

DEDICADO AO PECADO




NALDOVELHO

Hoje podia ser um dia internacionalmente dedicado ao pecado, mas só aos pequenos e saborosos pecados, aqueles que ansiamos em querer viver e que por força de regras, de travas, amarras, nos negamos a cometer.

Ficar na cama até mais tarde, preguiça é sempre um delicioso pecado! Degustar guloseimas, delícias, sem o risco de ter que engordar, a gula é outro maravilhoso pecado! Quem sabe uma mulher bem bonita, pele branca e macia, com muito veneno nos olhos, que saiba sussurrar, baixinho, coisas que o meu coração vive querendo escutar.

Peitinho sem silicone! Tenho medo de mulher turbinada, assim como tenho medo de andar de avião. Rola um quê de impotência, vai que em pleno vôo eu desabo, é muito grande a distância que existe entre o céu o chão. Talvez seja por incompetência, talvez seja esse um grande pecado: o de não cobiçar a perfeição.

Cobiça não! Esse é um grande pecado. Sou capaz de desejar a mulher do lado, mas não sou capaz de cobiçar a mulher do meu irmão.

Andar ocioso pelas ruas, sem ter que me preocupar com as horas e se elas vão ou não ter que passar. Tomar um conhaque, fumar um cigarro, eis aí dois pequenos pecados que eu tive de abrir mão.

Esse dia seria uma festa sem hora ou lugar para acabar. Teria a duração da distância entre o ir o ficar e o voltar, só para que eu possa chegar sorrateiro e me aconchegar saliente em seu colo, fazendo com que a eternidade desse instante seja mais um delicioso e exclusivo pecadodo qual nós nunca mais vamos ter que abrir mão.

segunda-feira, agosto 14, 2006

E EU NÃO CONSIGO ENTENDER



NALDOVELHO

Trago a urgência do dia que precisa nascer,
madrugada displicente, embaraçadas as pernas,
você diz que me ama, mas não consegue perceber,
que eu trago águas represadas, faz tempo,
lágrimas presas, cristalizadas, lá dentro...
Coisa mais sem graça querer chorar e não poder.

Trago a urgência da dor dilacerando meu corpo,
dor de poeta que profanou a palavra,
fez do verso faca afiada, fatiou sentimentos,
deixou feridas expostas, prosas, poemas,
cometeu heresias, descumpriu sacramentos...
Você fala comigo e eu não consigo entender.

Trago a urgência de um sonho estranho,
diálogos interrompidos num enredo tristonho,
janelas e portas permanecem trancadas,
e eu sei que tenho as chaves, só não sei onde!
Por mais que eu queira não consigo apaziguar
a loucura que ruge em cada célula do meu ser.

Trago a urgência do frio, da sede e da fome,
das caminhadas solitárias, da inquietude e da insônia,
das mãos distantes que não arriscam um carinho,
dos braços cruzados que não permitem um abraço
e a voz embargada já não ousa a cantiga.
Você fala comigo e eu não consigo entender!

domingo, agosto 13, 2006

NADA MUDOU POR AQUI



NALDOVELHO

Por aqui, imagens distorcidas, lágrimas que escorrem corrosivas e um violoncelo ao fundo a compor tristemente o cenário. Não há nada de novo nas horas, nada que se diga nos consola e o vento que varre as entranhas, expõe no homem toda a sua sanha.

Tambores martirizam os ouvidos, despedaçam os sentidos e um cheiro azedo e repulsivo, de mistura de corpos retorcidos, num banho de sangue que à cada dia se renova.Um Teu anjo ao fundo nos lamenta e chora. Muçulmanos, cristãos e judeus, budistas e até empedernidos ateus, todos passageiros de um mesmo barco, todos filhos de um mesmo Deus. Uma jovem senhora, a tudo assiste, ora ao Pai, clemência para os seus filhos, e diz que assim lhe ensinou um outro Filho: - Perdoa-os Pai, eles não sabem o que fazem!

E não há nada de novo nas horas, nada que se diga nos consola e o vento que varre esta terra atiça o fogo, espalha a chama, dissemina a guerra.

Um bando de pássaros sombrios, embevecidos com a cena, à espera. - Quem sabe aqueles que socorrem, possam esquecer fragmentos desta gente?
.
Um bando de anjos, em revoada, trazem mais, dilacerados corpos, tantas almas, tantos ais. E mais obreiros se apresentam ao socorro! Não há nada de novo nas horas, tudo é hoje, como era antes. Até o fato de continuarem a Te crucificar, diariamente, na tentativa de apagar, em nós, todo o ensinamento que deixaste.

Nada mudou por aqui!

SAUDADES DAS MINHAS GERAIS



NALDOVELHO

Têm dias que amanhecem
com cheiro de café bem forte
feito em fogão de lenha,
angu de corte na mesa
broa de milho e a certeza
do sorriso aceso nos olhos.
Dedo e meio de prosa,
cigarro de palha nos dedos,
logo, logo abrir a porteira,
o mundo nos chama lá fora,
Maria Fumaça que avisa,
tá meia hora atrasada
por conta de muita neblina,
manhãs embaçadas de outono.
Têm dias que eu amanheço
águas tranqüilas, riacho,
vento que venta macio,
cachaça madura, engenho,
dormente de trilho, caminho,
Maria Fumaça, um abraço
e tudo que eu penso ou faço
é fruto das delicadezas...
Manhãs embaçadas de maio,
saudades das Minas Gerais!

quarta-feira, agosto 09, 2006

VIVÊNCIAS



NALDOVELHO

Dentro das minhas malas eu carrego muitas coisas, vivências acumuladas por muitas e muitas jornadas, por trilhas, atalhos, escolhas, algumas delas erradas. Tantas dúvidas e incertezas, quantas coisas guardadas.

Carrego o suor dos amantes, o encanto, a paixão e a poesia, o sentimento não compartilhado, muitas histórias não terminadas e a dor de um amor sofrido. Carrego também a saudade de amigos, de entes queridos que em algum lugar do passado seguiram por outras estradas.

Dentro das minhas malas eu carrego muitas coisas: a armadura, a cicatriz, o conflito, o guerrilheiro de olhar cansado, o andarilho em busca de abrigo, o nobre, o juiz, o bandido, o feiticeiro, o anjo, o banido.

Dentro das minhas malas muitas coisas pesadas: a aflição, o medo, a espera, o arrependimento, a culpa, o pecado, a obrigação de desfazer o mal feito e desta feita fazer direito, a missão de reconstruir meus templos profanados pela ação do tempo.

Dentro das minhas malas eu carrego muita esperança. Carrego o ingênuo, o sonhador, a criança, a certeza de reencontrar o inimigo e fazer dele um novo amigo. Carrego o santo, o mago, o diabo, um sorriso para ser ofertado, o carinho do ser apaixonado que muitas vezes adormece cansado, mas amanhece e vai em busca de uma nova morada.

terça-feira, agosto 08, 2006

EU QUERIA SER FELIZ



NALDOVELHO

Eu queria ser feliz! Cultivei rosas, crisântemos, jasmins, ergui no fundo do quintal um templo e fiz brotar de lá uma nascente: águas cristalinas que jorravam sem parar. Colhi o veneno da mais insidiosa serpente, misturei a ele raios de lua cheia, ervas curtidas, poeira de estrelas, tudo isto num tonel da mais pura aguardente e fiz o antídoto pras dores do desamor.

Eu queria ser feliz! Espalhei por toda a casa essência de alfazema, pendurei na sala samambaias choronas, lá fora, uma árvore, flanboyan vermelho, e na varanda, confortável espreguiçadeira, só para saudar o tempo que haveria de passar. Descobri os segredos dos ventos de maio, fiz chover, chuva fina de junho, abriguei anjos perdidos em meu quarto, para que passado o inverno pudessem voar. Construí castelos de sonhos, seduzi formosa Iara, transformei pedras em valorosos guerreiros, sagrei meu leito com todo o amor que eu pude, espalhei meu sangue, suor, saliva e sêmen para perpetuar minha vida em verdade num tempo que eu não vou ver chegar.

Eu queria ser feliz, era tudo que eu queria! Mas o amor que eu pude não curou minha inquietude... Nasci poeta das coisas que sequer sei porque choro. Ainda assim, valeu a pena tentar.

segunda-feira, agosto 07, 2006

NEM SEMPRE...



NALDOVELHO

Nem sempre poesia, muitas vezes heresia,
enredo que não pode ser desfeito,
tramas, teias, dramas, grito espremido no peito,
histórias que o tempo fez questão de preservar.

Nem sempre são rosas, muitas vezes espinhos,
outras vezes são cortes, fraturas, entorses,
sangue coagulado, cicatrizes que ainda doem,
feridas que o tempo não foi capaz de curar.

Nem sempre fragrâncias, muitas vezes odores,
coisas cheirando a mofo, amareladas, apodrecidas,
resto de comida esquecida no forno,
coisas que o tempo não deu conta de dissipar.

Nem sempre vitórias, muitas vezes derrotas,
descaminhos estranhos, sem volta,
andar desequilibrado pela beira do abismo,
escolhas que o tempo deixou você tomar.

Nem sempre o poeta que existe em mim agüenta,
muitas vezes ele se ausenta, viaja nas funduras,
macera dores, nostalgias, amarguras
e depois de algum tempo voltar a sonhar.




domingo, agosto 06, 2006

BEIJA-FLOR AFOGADO NO MANGUE



NALDOVELHO

Chuva que chove por dentro,
vidraça embaçada por fora
e um vento virado do avesso
derrama meus sentimentos.
E a esfinge se ajoelha e chora,
segredo revelado faz tempo,
e o homem apressado nem olha,
não há nada de novo nas horas.
Um menino sofrido e sozinho,
beija-flor afogado no mangue,
a roseira que eu trago comigo
tem espinhos manchados de sangue.
Um cão pachorrento implora
pelo fogo do firmamento,
pois é lenta a marcha das horas,
soterradas nos constrangimentos.
E um tango ardido me chama,
nostalgia que eu temo se assanha,
luz da lua machuca as entranhas,
magia passional e profana.
Agora chove aqui dentro e lá fora
e no derrame dos meus sentimentos,
jorram versos que eu ouso e penso,
são poemas virados do avesso.
Beija-flor afogado no mangue.

ORGIA



NALDOVELHO

Samambaia chorona

deitou suas folhas num caramanchão.
Trepadeiras vadias,

enroscadas ficaram, acasaladas estão!

Recatada roseira, ruborizada as pétalas,

olhou de soslaio, comentou com inveja
sobre a promiscuidade,
brigou com o cravo que a tudo assistia,
chamou monsenhor, pediu seu apoio.

Monsenhor irritado já deu conta do estrago!
Já pensou se o lírio resolve imitar?

Violeta coitada ficou toda assanhada,
abraçou flor de lis, se entregou porque quis.
Girassol atrevido bolinou azaléia,
margarida excitada se enroscou às avencas
e a begônia tão séria quis fazer com a bromélia...

Samambaia, coitada, quis fazer poesia,
não deu conta que tudo acabou em orgia,
não percebeu que era o sonho de um delicado jasmim.

FLOR DE LIS



NALDOVELHO

Um trem na estação anuncia a partida,
um navio malvado levou minha amada.
estrada que segue e anuncia a distância
e a rosa, tão linda, despetalada no chão.
Madrugadas repletas de amores dispersos,
desencontros, viagens, cicatrizes, feridas,
a saudade inclemente aninhada em meu peito
e o espinho da rosa sangrou minha mão.
O vento varreu o outono pra longe,
trouxe chuva insistente, noites tão frias,
calou as conversas, esquinas desertas,
foragida a lua pra bem longe daqui.
Palavras que em versos se mostram estranhas
e acasaladas, insanas, inventam a cantiga.
Sonoridade profana, orgia de versos,
remédio pras dores do desamor.
Mandei construir no quintal lá de casa
um templo sem portas, janelas, tramelas,
um templo de versos, cantigas, poemas,
sagrei o meu pranto, semeei o meu canto,
e orei em silêncio, aguardando o porvir.
Notícias dos longes dão conta que em breve
um outro navio vai aportar por aqui,
trazendo a certeza da delicadeza,
muitas outras cantigas repletas de versos
e ainda bem que o tempo cicatrizou as feridas,
preservou a semente que brotou flor de lis.

sexta-feira, agosto 04, 2006

SOBRE O CADAVER DE UM POEMA



NALDOVELHO

Velhas carpideiras choram sobre o cadáver de um poema, pássaros em debandada, chuva de vento, constrangimento, sudoeste que se aproxima e varre meus pensamentos e as pessoas pelas ruas passam, e não param.

Na torre da igreja: sinos, esperança, missa das seis. Na cidade chove um absurdo de lamentos. Mais um cadáver! Desta feita um soneto e um beija-flor se debate inutilmente, paixão construída em versos que o tempo desmaterializou.

Luz da lua insiste em se mostrar nublada, portas e janelas permanecem fechadas, e aqui em meu quarto: tuas cartas, um maço de cigarros, um livro de contos, e as teclas do piano entristecidas: harmonia em tom menor, melodia dissonante, arrastada, quase fúnebre.

Lá fora, carpideiras continuam seu trabalho, versos espalhados, incoerentes, embaralhados, rimas pobres, mutiladas, dilaceradas. Ao longe: ritmos tribais, linguagem estranha, coisa panfletária, mensagem do avesso.

Aqui dentro: o poeta agoniza e chora: solidão, nostalgia, desentranhamento. Morre o homem, sobrevive a poesia. Na pedra fria seu epitáfio, ainda assim, as pessoas passam e poucos param! Aqui jaz minha reflexão.

CANTO FERIDO DA TERRA



NALDOVELHO

Cheiro de terra molhada,
orvalho abençoando a madrugada?
Pura nostalgia!
Faz tempo, a secura dos dias
impede que se processe
o encanto da primavera.
E assim padeço, agonizo,
por conta de feridas profundas
cicatrizes ardidas, corrosivas.

E o que restou?
Um leito seco onde outrora era um rio,
cinzas espalhadas pra todo o lado,
galhos retorcidos, queimados,
e um certo ar de desesperança
por conta da ignorância dos homens
que nunca respeitaram o seu chão.
O ciclo sagrado da terra?
Perdido por entre queimadas.

Quem sabe um dia, das entranhas,
eu possa ressurgir renovada?
Quem sabe o homem que restou
e que tanto hoje chora
tenha aprendido a lição?

Enquanto isto, em seu bolso, eu percebo,
um punhado de sementes de trigo.
Um fio de esperança de um dia voltar a semear?

quarta-feira, agosto 02, 2006

BELEZA TRISTE



NALDOVELHO

Como pode um poema ser belo
e ainda assim ser triste?
Existirá a beleza triste?
Confesse que no entardecer
rola um quê de tristeza,
bate uma nostalgia,
coisa que não se consegue explicar.
E a lágrima no rosto da mulher amada?
Muito triste!
Mas ainda assim, reside ali uma beleza
que por mais que sejamos fortes,
homem nenhum resiste!
E o olhar desconsolado de um filho,
ainda bem criança, ao se despedir, manhã cedo,
quando você vai trabalhar?
Alguém resiste?
Madrugada deserta com noite de lua cheia...
Melhor nem comentar!
O som das águas do mar a acariciar a areia,
praia deserta, tardes de inverno, chuva fina e macia...
Consegue se situar ?
Música cigana, visceral e profana,
um tango arrastado e insano,
um chorão com Zé da Velha ao trombone
e o Paulo Moura a nos atormentar...
Vocês precisam escutar!

É beleza triste existe...
E é disto que o poeta costuma se alimentar.


LUA CHEIA



NALDOVELHO

Aberta a janela:
lua cheia invadiu meu quarto,
e sem nenhuma cerimônia
deitou em minha cama,
sugou do meu corpo:
sangue, suor, saliva, sêmen.
Pela manhã:
lençóis amarrotados,
travesseiro emudecido...
Solidão!

AO AMOR E A COMPREENSÃO



NALDOVELHO

Existe um conflito lá fora que esconde um outro que rola dentro de cada um de nós. E os sinais são bem evidentes no mais simples dos movimentos de raiva ou constrangimento, no trânsito engarrafado, nas filas dos supermercados, no vai e vem das pessoas, anestesiadas, inconscientes, aglomeradas pelas ruas dessas cidades nubladas, e no campo, lugares ermos, inóspitos, onde o instinto precede o bom senso e a razão.

Existe um conflito lá fora que esconde um outro que rola dentro de cada um de nós. E os sinais são bem evidentes na agressividade enrustida, na bofetada incontida, nas palavras impensadas, farpas afiadas lançadas, na rejeição ao divergente, na discriminação ao diferente, no descaso às crianças, aos velhos, aos doentes e a toda a população carente das periferias das cidades, favelas, guetos, cortiços, ou ainda no campo, miseráveis escravizados, excluídos de tudo aquilo que julgamos civilizado.

Existe um conflito lá fora que esconde um outro que rola dentro de cada um de nós. E os sinais são bem evidentes na pedofilia nojenta, tão comum nestes dias, na mulher ultrajada e diariamente violentada, no fundamentalismo “excrescente” dos religiosos a perseguir sem descanso a qualquer outra escolha que não seja aquela que dizem sagrada ao Santo Nome de Deus.

Existe um conflito lá fora que esconde um outro que rola dentro de cada um de nós. E os sinais são bem evidentes nos políticos que nos exploram, na justiça promiscua que chafurda no lodo; e em cada um de nós, que omissos nos acomodamos, permitimos e se houver a oportunidade, até participamos, pois é sempre mais importante levar vantagem, mesmo que seja ao custo da dor de um irmão.

Existe um conflito lá fora que esconde um outro que rola dentro de cada um de nós. E os sinais são bem evidentes no AR-15 do traficante, nas bombas que explodem inclementes, na superioridade de um povo a massacrar um outro povo, no desrespeito constante ao direito do próximo, ou de quem esteja distante, afinal somos sempre dominantes pelos nossos motivos ou razão.

Existe uma guerra lá fora que por nós será sempre permitida e que só será resolvida quando a guerra que existe aqui dentro der lugar ao amor e a compreensão
.

terça-feira, agosto 01, 2006

CRÔNICA DE UMA CIDADE SITIADA




NALDOVELHO

Ao amanhecer percebo: rastros, marcas estranhas, galhos retorcidos, flores pisadas, evidências de pilhagens, sinais de tempestade, manchas de sangue para todo o lado, sombras. E pelas ruas o meu povo, assustado, desconfiado, o medo estampado nos olhos, faces enrugadas, apreensão.

Dobrar a esquina, já não é tão seguro. O sinal está fechado, cuidado! Alguém caminha em sua direção. A sensação de estarem sendo vigiados, sufocados e o escudo que carregam é frágil, não resiste à agressão.

Na subida do viaduto um corpo estendido no chão. Amanhã esta imagem estará nos jornais. Um ônibus acaba de ser incendiado. Rebelião no presídio, muitos mortos, aflição! Um atentado, crianças reféns numa escola, um regate impensado, muitas mortes, desolação.

Israel, Líbano, Chechenia, África, Iraque, Afeganistão. Quantos por lá ainda morrerão? Quantos por aqui cairão?

Retorno depressa ao meu abrigo, as chaves do cadeado, do portão, da porta... Entro rapidamente, protegido, atrás das grades. Olho pela janela e percebo vultos, rastros, marcas estranhas, galhos retorcidos, sangue pra todo o lado!

Crônica de uma cidade sitiada, São Paulo, Rio de Janeiro, Tel Aviv, Beirute, quase todo o continente africano, Iraque um país violentado, Afeganistão. Ligo a televisão e assisto o noticiário: chacina na periferia da cidade, doze mortos, entre eles, quatro adolescentes; um bombardeio atinge um prédio cheio de refugiados, vinte e sete crianças mortas.

Não há nada de novo nas horas, tudo é hoje como era antes. Eles não sabem o que fazem! Perdoa-os Pai!

E VOCÊ NÃO PERCEBEU



NALDOVELHO

Já faz algum tempo que da janela do meu quarto eu a observo atentamente. Quando vai chegando à noitinha, as luzes do seu apartamento se acendem e por uma fresta da cortina percebo-lhe os movimentos. Mulher, ainda não chegada aos trinta, morena, com um corpo delicadamente definido, como se por alguém tivesse sido esculpida, certamente um grande artista, alguém com o dom de retratar a beleza de um ser. Já faz algum tempo que isto acontece e você nunca percebeu.

Já faz algum tempo que eu sei o seu nome e confesso: ele vibra dentro do meu apartamento de uma forma tão intensa, às vezes quase gritado, às vezes sussurrado, assim feito um mantra, como se fosse um hino, repetido tantas vezes, uma elegia à minha loucura, uma ode à dor e ao prazer.

Quantos poemas chorados, solitários orgasmos, muitos versos partidos, não consumados, até pintei um seu quadro, só não sei se lhe fui fiel, se lhe fiz justiça, pois minhas mãos sempre trêmulas em momento algum conseguiram dissimular tanta e tamanha ansiedade pelo desejo de lhe ter, ainda que só numa tela nostálgica dependurada na parede do meu quarto, tipo um altar, um santuário de louvação ao pecado, nesse ritual, ungido pelo seu veneno, que hoje inoculado em meu sangue percorre artérias e veias, caminhos os mais estranhos e consome a minha mente através da dor. Pois você vive tão perto, presente, e ao mesmo tempo ausente, que por mais que eu tente não consigo lhe esquecer. E ainda assim você em nenhum momento percebeu.

Outro dia fiz uma canção ao piano que toda a noite eu toco. Quem sabe numa madrugada dessas, as notas invadam o seu quarto e consigam lhe seduzir? Permitindo que o meu encantamento possa construir um momento de rara magia.

Terça passada, já bem tarde da noite, ao acordar afrontado, fui direto à janela me apoiar num cigarro, me aprumar, me acalmar, conciliar o sono, sei lá! Vi sua janela aberta, descortinada ao intruso. Perdoe-me, mas não pude evitar! Fiquei vigiando na tocaia, esperando vê-la por inteira, mesmo na penumbra, quem sabe? Mesmo que de relance, não importa! Queria só lhe ver. Fiquei ali parado até o amanhecer, quando assim, de repente, a cortina como por desencanto foi fechada inclemente e nem a sua sombra eu vi. E mais uma vez você não percebeu.

Já faz algum tempo, li num livro que a força do pensamento seria capaz de concretizar nossos mais ocultos sonhos. Ontem, por desesperado desejo, reuni tudo o que eu tinha, toda a força e loucura e me concentrei em você. Adormeci, desmaiei, desfaleci, não sei! Só sei que sonhei um sonho, desses que nunca mais se esquece e que só fez aumentar o desejo, por um instante preciso, precioso e sagrado, de tê-la ao meu lado, de poder estar em você.

Foi como se eu virasse essência, suavemente perfumada a viajar pela noite, a entrar pela sua janela generosamente entreaberta e invadir-lhe o quarto só para lhe ver de perto e me alimentar do seu ser. Você estava adormecida, aninhada na penumbra do leito e uma tênue luz acesa revelava-a generosa, inteira, nua, travesseiro entre as pernas, apenas num lençol enroscada feito uma sedutora serpente com poucas partes latentes, como uma dádiva ao desejo a mostrar-me à certeza que estariam em seus mais secretos redutos a fonte da minha perdição.

Fiquei assim paralisado, admirado e enamorado por todos os pontos, recantos, por tantos e tão belos segredos, por todas as suas curvas e dobras, lábios, cabelos e pêlos, quanta loucura! E eu ali parado, trêmulo, quase chegando ao orgasmo, só pela visão do absurdo de poder perceber seus caminhos, pela possibilidade dos seus carinhos e por poder me imaginar tão sedento frente a frente a um oásis, na verdade uma miragem feita para me enlouquecer.

Não pude furtar-me ao impulso de delicadamente tocá-la, de deixar minhas mãos abusadas ao sabor da sua carne macia, de envolvê-la na essência que eu por tanta e quanta demência ousara me transformar. Suavemente descobri as poucas partes, pedaços que aquele lençol inconveniente teimava em ocultar, e ao lhe revelar por inteira, deslizei então os meus dedos por todas as trilhas, atalhos, por raras marcas e sardas, por montes, por fontes, clareiras, e ao tocá-la de jeito reinventei o prazer. Para o meu espanto e deleite você em seus sonhos seguia, porém como em transe permitia, participava, concedia, expondo ainda mais o seu corpo, mostrando-me os caminhos e a magia do seu respirar ofegante. Os lábios entreabertos gemiam palavras que eu não conhecia, o suor brotando dos poros por entre os seios escorria, de suas coxas tão quentes, do seu colo ardente, de suas fendas molhadas e ao mesmo tempo sedentas e o seu cheiro cada vez mais presente, tomando conta do ambiente, a me puxar pra você.

Não pude mais me conter! Toquei-lhe os lábios com os meus, faminto que estava suguei sua língua, e como um bicho sedento, saciei-me em sua saliva, e percorri alucinado com a minha boca o seu corpo, num ritual indecente como se fora um bandido, um ser descontrolado, um animal no cio, sei lá o quê! Você ainda assim permitia misturar o suor do seu corpo ao suor do meu corpo e lentamente se movia enlaçando-me numa teia, sugava também do meu corpo toda e a energia que eu fora capaz de trazer. A alimentar-se tão louca, prendia-me entre as pernas, trazendo-me para dentro do seu próprio corpo, me imobilizando entre as suas presas para depois deixar se entranhar selvagem por todos os pontos e poros, latejando por inteira, primeiro suave e lentamente, depois ritmada e ardentemente até atingirmos um orgasmo, um doce e inundado espasmo, descontrolado por tanto e tamanho feitiço, infinitamente demorado, até que tudo se fizesse ausente, até que eu acordasse abatido, só que no silêncio do meu quarto, sobrando em minha cama, dolorido e solitário, impregnado com o seu cheiro e cada vez mais seu servo e escravo.

Ainda assim, você nem sabe o meu nome e nem reconhece o meu rosto, não percebe que ao me projetar em seu quarto, deixei ali, gravado um poema de adoração ao seu corpo e de amor por você.

NÓ CEGO



NALDOVELHO

As horas tão lentas, a janela entreaberta,
a porta do quarto, faz tempo, fechada
e em cima da mesa um monte de papeis,
rascunhos de versos, idéias desencontradas,
solidão, nostalgia, insônia e inquietude...
Coisas sem importância!
O cinzeiro lotado, ainda cabe um cigarro,
uma xícara de café, doce e encorpado.
Lá fora é outono, aqui dentro chove...
Não consigo entender, o sol se recusa a nascer!
E o coração aprontando, ao contrário das horas,
num ritmo apressado, agora chove lá fora,
meus olhos já não choram, estiagem de sonhos,
os cortes cicatrizados, nada que eu possa fazer!
Madrugada emperrada e o inverno aprisionado,
e um sol de preguiça esboça um movimento.
Calçadas e ruas molhadas, chuva fina de junho
e a vida presa num embrulho, nó cego,
que eu não consigo desfazer!

MAR BRAVIO



NALDOVELHO

Mar tão bravio fustiga o rochedo dentro de mim. Força dos ventos, outono de versos, doídos, confessos, poemas dispersos, recolhidos às pressas, retornam as entranhas. Calado o verbo, desafiei a peçonha e não resisti.

Lágrima cristalizada, inquietude latente, as horas que passam, nostalgia presente. Quem sabe um blue possa me definir? Um canto bandido, ardido e espremido, uma garrafa de Vodka já pela metade, um cigarro queimando entre os dedos marcados, um outro esquecido no cinzeiro largado. E mais um Blue! Acho que a Janis Joplin passou por aqui!

Quem sabe as águas que chovem insistentes? São águas de março lavando a cidade. Quem sabe outra música, revelar a saudade? Eu tenho um segredo aprisionado, guardado. Quem sabe a Nana possa me redimir? A Caymmi é claro! A outra é uma poetisa, entendida em desentranhamentos, mas anda lá pelas Gerais, nem aparece mais por aqui! Quem sabe alguém de palavras certeiras, de versos precisos? Quem sabe o remédio que eu tanto preciso possa abrir a janela, renovar o ambiente, me tocar pro chuveiro, jogar fora o cinzeiro? Quem sabe um poema brotando em vertentes faça ressurgir o poeta que acredita na vida? Quem sabe uma outra música? Um piano, uma valsa? Só não quero um bolero, senão eu choro! Quem sabe amanhece e o mar bravio pare de fustigar o rochedo que existe dentro de mim?

COISAS DA VIDA



NALDOVELHO

Limpo as feridas,
esterilizo a pinça,
retiro os espinhos.
Todo o cuidado é pouco,
feridas mal tratadas
costumam infeccionar.
Um antiinflamatório ia bem!
Agora é só seguir adiante,
cicatrizes permanecerão.
Na mudança de tempo
vão incomodar,
só pra lembrar
que a pele ainda é fina.
No trato com as rosas,
ainda que lindas,
todo o cuidado é pouco...
Coisas da vida!

O INESPERADO



NALDOVELHO

O inesperado, deliciosamente inusitado... Incidentalmente a mão esbarra e eu percebo a maciez do seu seio. Encabulado, busco disfarçar o desconforto, nada mais apropriado do que a mão no bolso, a outra em busca de um cigarro, disfarça, mas não nega e treme!

Arrisco um olhar assim de soslaio e percebo um certo ar de consentimento, de cumplicidade e até de convencimento, de quem sabe que acabou fazer um estrago. Qualquer hora dessas o acidental vira propositado e o incidental vira premeditado e provavelmente vai ser ainda maior o estrago, pois a textura da sua pele demonstra o quanto eu estou à mercê do perigo e o seu cheiro em minha mão só faz aumentar o que eu digo. Parece até brincadeira, tipo gata querendo devorar passarinho por atiradeira ferido.

Lá vem você de novo, a se aproximar sorrateira e eu aqui, a observar o contorno das suas coxas, vestido fino a denunciar suas linhas, conteúdos contundentes... E o medo que eu tenho de me embaraçar, tipo novelo de lã nas mãos de menina felina, de narinas dilatadas e olhos perigosamente vidrados, que se movem lentamente mostrando todo o cuidado, que é pra não espantar a caça. Pobre de mim: vou virar presa entre os dentes e acabar sendo devorado inteiramente.

Lugar ermo, meio imprensado, escada de incêndio, área de escape e eu assim acuado, misto de quero e só quero, não tentar escapar da cilada que você habilmente armou. Seu hálito, seu cheiro, campo minado, atalho forçado, porém tão desejado.

Melhor não resistir, deixar que me crave as presas, deixar que minhas mãos percorram bordas, margens, represas prontas a transbordar e inundar meus sentidos. Cachoeiras, correntezas, abrigos e eu aqui querendo firmar as pernas, entrelaçadas às suas pernas, sentindo em minha boca o gosto de sua língua, irrequieta, atrevida e molhada...

Melhor fechar os olhos, melhor deixá-los abertos, não dá pra controlar o incerto, nem minhas mãos em seus seios, nem suas mãos a explorar meu desejo de lhe fazer inundada. Você se encaixa, permite que eu penetre ardido, numa dança visceral e insana, o suor a escorrer do seu corpo, misturando-se ao suor do meu corpo, em movimentos harmonizados, completos. Contrações, espasmos, orgasmo e eu transbordado viajo e me entrego assim consumido e desgovernado, ao poder da sua peçonha, e as contrações que ainda restam em seu corpo. E em seus olhos reside uma diversidade de gostos, de mulher saciada e tão plena, que permanece, teimosamente, encaixada, e que olhando em meus olhos assustados, recomeça o ritual, e me aperta, contraí suas partes molhadas e ao mesmo tempo sedentas, se atrita e se move faminta, em busca de uma nova e louca viagem até não mais poder.

Corredor amplo, iluminado, passos rápidos e disfarçados. Um olhar de cumplicidade atenta, um pacto de silêncio em seus olhos, um sorriso maldosamente endereçado e um recado estampado no rosto: qualquer hora a gente se vê!